A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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SÓ PARA QUEM NÃO PODE PASSAR SEM ESCREVER

(Raymundo Silveira)

Por favor, não leia isto se você pode passar muito bem, obrigado, sem escrever! Este texto se destina exclusivamente a "escritólatras". Pergunta para quem é viciado em escrevinhar: o que vocês fazem naqueles momentos terríveis em que surge uma necessidade imperiosa de escrever - momentos que são piores do que os de viciados em heroína em plena crise de abstinência - e não sai nada? Parece que, de repente, nos tornamos estéreis, sem a menor capacidade de imaginação; abobalhados mesmo. Por mais que a gente se esforce, faça promessa, rogue praga, ponha a imaginação na incubadora e faça fertilização "in vitro" com as células cinzentas do cérebro, a criatividade parece dizer: "daqui não saio / daqui ninguém me tira". Pois era exatamente o que estava ocorrendo há poucos instantes comigo. Adivinhem como foi que saí deste impasse! Juro como ninguém adivinhou e muito menos vai acreditar: pois foi precisamente escrevendo sobre isto. Ou seja, me deram uma limonada e eu fiz dela um limão. Ou seria o contrário? Sei lá, detesto chavões. Mas o que é verdadeiro é que saí deste conflito escrevendo justamente sobre ele próprio: "Como Escrever Sobre Um Assunto Que Consiste Em Não ter Assunto Para Escrever".

Viram só como apenas com esta conversa mole já preenchi quase meia página? Há vários tipos de escritores quanto à crise de falta de criatividade: aqueles que brigam como sua própria falta de inspiração, aqueles que se acomodam e deixam para depois, os que desistem e jamais voltam a pensar no assunto e os que, como eu, põem no papel, digo melhor, no computador, a primeira coisa que lhes vier à cabeça. Não importando se se trata do vai e vem de formigas num formigueiro ou da aparição de Nossa Senhora. Como nem formigas eu encontrei para escrevinhar sobre elas, resolvi fazê-lo sobre a falta de assunto, isto é, sobre o "nada". Mas como é que se pode escrever sobre o "nada" se ele não existe? Lá se vai outra idiotice: aí é que está o busílis. A propósito, quem sabe aí o que diabo é "busílis"? Aposto que quase ninguém. Porém, não foi sobre "busílis" que me propus a escrever, foi sobre o "nada". Repetindo a pergunta: como é que se pode escrever sobre o "nada" se ele não existe? Minha resposta é que um "nada" é sempre um "nada" E se ele "é", então tem de ser alguma coisa. Conclusão: a diferença entre o "ser" e o "nada" - que me perdoe o Jean Paul Sartre - só depende da gente mesmo. Isto está parecendo lógica de bêbado, pois não? Mas juro que só bebi seis doses de olde eite. Continuemos na mesma linha de raciocínio. Ora, se o "nada" só depende de nós, conseqüentemente está nas nossas mãos fazer ou deixar de fazer dele um "tudo". Ou um "sobretudo". Não "sobretudo" de sobretudo advérbio que significa principalmente; especialmente. Mas sobretudo substantivo; daqueles que vestimos sobre tudo (todas as outras roupas) a fim de nos protegermos das intempéries. Neste caso específico, da "intempérie" metafórica da falta de assunto. Pronto! Só com isto já preenchi (esperem, deixem-me ver no contador), já preenchi quase uma página. Faltam só dois dedos (deitados). Já pensaram o quanto é fácil?

Pois se pensaram, podem ir tirando a chuva do cavalinho porque não é assim tão fácil, não. Pelo contrário: é muito difícil. Primeiro porque se eu estivesse escrevendo isto sem me preocupar em atrair a atenção de vocês, isto é, um texto chato, sem despertar curiosidade, expectativa ou, no mínimo, este questionamento: "só quero ver onde este idiota (ou bêbado) quer chegar", o máximo que iria conseguir seria preencher um espaço vazio com "nada" mesmo. E aí seria um "nada" sem nada. E ninguém - nem eu - se interessaria em ler porque não se lê um "nada" que não contenha nada mesmo que se aproveite. Nem mesmo para passar o tempo. Sobretudo (agora é "sobretudo" mesmo, advérbio), sobretudo quando é um "nada" chato. Quem sabe, um nada como este. Depois, por melhor que você escreva sobre o "nada" tem de prender o leitor do começo ao fim, usando certos artifícios como este que acabei de usar agora, ao afirmar a princípio, que era muito fácil imaginar um tema e trabalhar sobre ele, e depois negar tudo, me contradizendo, quando disse que era difícil. Pronto, terminei! Viram como foi fácil?

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