A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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A Volta

(Raymundo Silveira)

O dia trinta e um de Julho de 1957 nunca amanheceu. Assim como a infância de certos indivíduos que jamais conheceram a juventude - pois transitaram sem nenhuma solução de continuidade da infância infeliz para a vida adulta e para a velhice -, as trevas da madrugada daquele dia de chumbo não conheceram a aurora, o sol a pino e nem o declínio da tarde, pois passaram diretamente para o lusco-fusco do ocaso. Pelo menos foi esta a sensação que confrangeu meu coração adolescente. Ademais, todos os seres vivos ao meu redor, pareciam haver sofrido um giro de 180 graus na circunferência virtual das suas vidas. Minha mãe estampava, no semblante, uma tristeza de luto. Os vincos já pronunciados da fronte do meu pai se tornavam mais profundos. Minhas tias e primas tinham a respiração entrecortada de suspiros, que elas se esforçavam por dissimular, mas era como se alguém não conseguisse conter o pranto e se escondesse num lugar isolado a fim de abafá-lo, e a solidão daquele retiro só contribuísse para romper qualquer obstáculo e dar vazão àquele vagalhão de saudades. Além do mais, meu gato não saía do meu pé; o instinto felino lhe dizia que o seu único amigo em breve já não estaria mais ali para afagá-lo todas as manhãs, madrugadas e a qualquer outra hora que bem lhe aprouvesse.

Naquele dia, a viagem para o Ateneu teve de ser feita através daquela trilha acidentada e mais destinada ao tráfego de alimárias, pois o trem havia enguiçado. O transporte fora contratado para sair ao meio dia; antes tivesse partido logo que despertei. O pêndulo do relógio da parede fazia tic-tac, tic-tac, tic-tac, mas aqueles ruídos soavam aos meus ouvidos como se fossem emitidos por um duende malvado, e o som que eu escutava, de fato, era o da sua voz estridente e plena de sarcasmo a pronunciar continuamente estas palavras: um segundo a menos, um segundo a menos, um segundo a menos. Fugi dali para não enlouquecer e desejei ardentemente que o veículo funerário que iria carregar meu corpo vegetal chegasse logo, assim como um condenado à morte que suplicasse ao carrasco para abreviar o ritual da execução.

A sinuosidade da estrada fazia com que a silhueta da montanha viesse e fosse; e ela, de fato, ia e vinha; vinha e ia, como se ambos fôssemos personagens de Jonathan Swift: eu um humilde liliputtiano e ela um Gulliver descomunal se divertindo em me causar medo, dor e aflição num pavoroso jogo de "pega não pega". Embora já se tenham passado nove lustros, é curioso constatar como os desconfortos físicos da viagem não me afetavam. A poeira e a fumaça que subiam de debaixo do carro e me entravam fossasnasaisadentro; as sacudidelas do veículo rústico sem poltronas; a boléia planejada para carregar cinco passageiros, onde agora viajávamos nove; nada disto me fazia sofrer, e é uma demonstração inequívoca de que a dor da alma sufoca a dor física, pois nesta última existe sempre uma perspectiva de alívio de que carece a primeira.

A cerca de dois quilômetros do nosso destino havia uma elevação da estrada de onde se tinha uma visão abrangente de toda a cidade, mas onde se destacavam três das obras mais salientes do bispo pontífice: ao fundo se erguia um "microcorcovado" sem mar, em cujo topo abria os braços um Cristo Redentor em miniatura, e em cujas redondezas se difundiam favelas, como se a intenção de quem o pôs lá fosse exatamente a de reproduzir um simulacro do monumento símbolo da cidade do Rio de Janeiro. Um pouco mais para levante podia-se divisar os contornos de uma construção em estilo pombalino, mas com as indefectíveis nuances das edificações romanas: a Santa Casa de Misericórdia - primeiro e único nosocômio não apenas daquele lugar, bem como de todo o norte do estado, e mais uma obra benemérita do bispo-rei, misto de Midas e de Sumo Pontífice. No primeiro plano daquela paisagem pioneira, milagrosamente fincada numa região quase desértica, sem água, sem vegetação, sem fauna e sem oásis, o "Ateneu". É impossível dissociar a sua imagem de alguma edificação romana. Naquela época eu sequer cogitava disto porque, apesar de desconfiar da influência barroca da cidade eterna sobre todas as obras arquitetônicas do prelado, ainda não tinha o dom de proceder a tal exercício de comparação e, obviamente, desconhecia qualquer monumento romano, exceto através de fotografias. Hoje, contudo, eu sei com que ele se parece. Parece é modo de dizer é uma imitação grosseira, em miniatura, da fachada principal do Palácio do Quirinal. Estou agora mesmo com uma reprodução da edificação romana no monitor do meu computador e uma outra do "Ateneu" na tela da minha memória. Talvez alguém especializado em arquitetura ria de mim. Mas ninguém consegue tirar da minha cabeça que aquela fachada - desenhada por Domenico Fontana, Carlo Maderno, Flaminio Ponzio e Gian Lorenzo Bernini, iniciada em 1584, mas somente concluída no século XVIII sob o pontificado de Clemente XII -, não tenha servido pelo menos de uma audaciosa pretensão de influência para quem projetou e construiu o "Ateneu". Quando o adentrei, afinal, naquela tarde/noite de 31 de Julho de 1957, fiquei a cogitar de que aquelas férias nada mais foram também do que uma reprodução, em curta metragem, do filme sem cortes da minha própria vida.

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