A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Sobre Reveillons e Psicanálise

(Raymundo Silveira)

O primeiro reveillon de que me lembro não se chamava reveillon; eu devia ter uns sete ou oito anos de idade e o passamos, minha família e eu, na calçada da minha casa, com uma mesa repleta de refrigerantes (quentes), pois beber refrigerantes (quentes) naquele tempo, só no reveillon - que, como já disse, não tinha este nome - e durante os aniversários de um de nós. Lembro também que o dia seguinte era chamado "Dia de Ano", que as pessoas pronunciavam didiano e eu entendia bibiano e, por causa disto, sentia tanto medo chega me tremia todo, porque Bibiano era o nome de um doido que diziam pegar menino e levar pra fazer mingau - era, portanto, o Babau, ou o Lobo Mau dos dias de hoje.

Não se falava em peru; champanhe era um tipo de guaraná (quente) fabricado pela Antártica; havia clube, sim, mas este era um lugar tão ermo quanto o cemitério e fogos de artifício eram uns dois ou três foguetes soltados pelo fogueteiro Gerardo Babão, que diziam ser meu parente, e eu jamais entendi porque ele tinha este nome, pois nunca ouvi falar que ele puxasse o saco de alguém. Portanto, quando o relógio da coluna da hora batia as doze pancadas da meia noite, além dos traques do Gerardo Babão só se ouvia o badalar do sino durante uns cinco ou dez minutos acionado pelo sacristão, o Ribamar Pum Pum - também nunca entendi por que ele tinha este sobrenome pois jamais o vi, ou melhor, ouvi, peidar.

E pronto! Todo mundo ia dormir e acordava na manhã seguinte sem nenhuma ressaca; era um feriado de interior como outro qualquer; sobrevinha em mim uma certa melancolia, sobretudo no período da tarde, e até agora ainda não havia descoberto por quê, mas neste exato instante acabo de fazer uma livre associação de idéias que me parece um insight significativo. É que durante três ou quatro meses eu esperara por aquelas festas, principalmente pelo Natal, e então me sentia como alguém, mesmo adulto, que espera muito tempo a fim de atingir uma determinada meta e quando isto se concretiza, percebe que nada daquilo era, na realidade, o que esperava.

Não sei por que, mas na primeira vez em que ouvi a palavra reveillon, achei-a parecida com roupa de mulher, produto cosmético ou nome de remédio. Já morava na cidade grande, mas os "festejos" continuavam os mesmos - ou eram até mais frugais - do que os dos tempos das viradas de ano da aurora da minha vida, da minha infância querida que os anos não trazem mais e, dos quais, não sinto saudade absolutamente alguma.

Também não entendo por que não sinto esta saudade que todo mundo diz sentir, mas quanto a isso ainda não consegui fazer associações livres, nem muito menos obter quaisquer insights, embora desconfie e talvez isto já seja o começo de um deles. Agora me permitam uma rápida fuga de idéias. Porque, sendo o português uma língua além de linda, muito rica (quando, acaso, a falo com outros lusófonos diante de algum estrangeiro este fica nos olhando como se fôssemos marcianos, deixa cair o queixo e só falta babar), mas sempre temos esta mania de importar vocábulos adventícios? Introvisão, por exemplo, não substituiria muito bem o tal de insight? Sei não, mas acho que temos mesmo é vergonha da nossa desprezada Flor do Lácio e nunca descobri o porquê disto também, mas agora mesmo estou tendo outra espécie de insigth, digo melhor, introvisão: acho que trezentos e cinqüenta anos de escravatura têm bastante a haver com tudo isto.

É curioso, comecei a escrever uma crônica sobre o Reveillon que se aproxima, e estou chegando ao fim com a sensação de que escrevi mesmo foi o relatório de uma sessão de Psicanálise. Esta minha fuga de idéias... Meu único receio é que daqui mais um pouco esteja chamando a mim mesmo de Rei. Rei de quê? Por que não da Inglaterra?

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