"Eu pensei que todo mundo
Fosse filho de Papai Noel
Bem assim felicidade
Eu pensei que fosse uma
Brincadeira de papel"
(Assis Valente)
Escrevi aqui há poucos dias: "Juro como me esforço para
encontrar alguma coisa muito alegre para escrever quando vem chegando o Natal,
mas nunca encontro." Pois não é que hoje escarafunchei os
escaninhos da memória e encontrei uma! Lembro-me de pelo menos um Natal
muito feliz, tanto quanto poderia fazer feliz a uma criança de cinco
anos que acreditava na vinda de Papai Noel, com a mesma fé que tem hoje
de que chegará rigorosamente, no início de cada ano, a papeleta
da cobrança do iptu.
Até a mim mesmo causa espanto a capacidade de a minha memória
retroagir a tão tenra idade. Contudo, não resta a menor dúvida
- lembro muito bem. Recordo-me, inclusive, de que ainda mijava na rede. Sempre
dormi e durmo em redes quando estou em casa; nunca me acostumei com cama, pelo
menos com esta função especificamente hipnótica, mesmo
tendo passado tanto tempo dormindo nelas durante a época em que estive
internado em colégios, viajando, ou em casas de colegas e amigos, quando
estudávamos juntos; quer dizer, enquanto não estávamos
estudando, obviamente.
Mas, como dizia, aos cinco anos de idade ainda mijava na rede. Do princípio
daquela noite de Natal, que deve ter sido o primeiro da década de 1950,
não lembro nada; provavelmente devo ter ido dormir muito cedo, porém,
na manhã seguinte ao despertar, tive uma surpresa maior do que se ganhasse
agora o Nobel de medicina; mais ainda, o de literatura. Como mijava na rede
e o mijo, claro, caía no chão, Papai Noel não pusera nada
exatamente debaixo dela, e sim no chão mesmo, mas com uma boa margem
de segurança de distância. Foi, portanto, a primeira coisa que
vi ao me levantar para ir fazer mais xixi. Não sei por que crianças
fazem tanto xixi; aliás, sei, sim, mas não irei perder tempo explicando
isso agora, pois estou escrevinhando uma crônica e não escrevendo
um tratado de urologia pediátrica.
Todavia, não era sobre nada disto o que queria falar. É, no mínimo,
curiosa esta minha mania de começar a comentar uma coisa e misturar com
outra completamente diferente. Só pode ser esclerose, medo de esquecer
ou aquela fuga de idéias que costuma acometer os malucos. Queria falar
mesmo era sobre o meu primeiro presente de Natal. Foi aquela, a primeira vez
que me disseram existir Papai Noel e, como já disse no princípio,
passei a acreditar nele muito mais do que hoje creio em imposto de renda. Só
havia uma desconfiança: como me contaram que ele descia pela chaminé
da cozinha da minha casa, fiquei a imaginar as suas roupas e a cara cheias de
fuligem, o que não batia como os retratos dele que me mostravam. Não
duvidava sequer de que aquela barriga imensa pudesse passar pelo exíguo
diâmetro da tal chaminé.
O meu presente era um trenzinho de madeira - muito diferente, portanto, daqueles
outros que "Papai Noel" trazia quando chegaram os Natais das minhas
filhas, e que só faltavam falar. Como é que é, trem
não fala? Então não faltava mais nada: eram trens de verdade
mesmo. O meu, não! Era de madeira, mas me fez muito mais feliz do que
se ganhasse hoje todos os trens do mundo; inclusive os do metrô, de Paris,
de Londres, de Moscow e, de quebra, o Orient Express. Minha felicidade, alegria,
inocência eram tão imensas que não suportei esperar mais
nem um pouco e fui despertar os meus pais para verem e ficarem sabendo o quanto
Papai Noel era bom. E mais, tal qual Assis Valente, fiquei acreditando piamente
que todo mundo era filho dele também.