A Garganta da Serpente
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Como Seria A Vida Sem Internet?

(Raymundo Silveira)

Há poucos minutos recebi um e-mail de uma amiga, cujo computador teria sido raqueado, ou coisa que o equivalha, e ela foi a um cybercafé a fim de dar vazão ao seu vício (ou dependência) virtual, e eu fiquei aqui a pensar com os meus botões - ou melhor, com os meus zíperes, pois estou trajando uma indumentária de jogging, que não tem botões -, como seria a vida se de repente sumissem para sempre os computadores e a Internet? Pra começo de conversa, eu não estaria escrevinhando isto, não apenas por que não seria possível escrevinhar sobre algo que não existe, mas também porque não "teria saco" para fazê-lo à mão ou em máquina de escrever e nem teria como e nem para onde enviar as escrevinhações.

Depois perguntei a mim mesmo, em alto e bom som, como é o meu costume fazer: "o que seria daquelas pessoas com bastante disponibilidade circunstancial ou estrutural de tempo - para evitar o termo politicamente incorreto de desocupadas?" Uma destas pessoas, certamente seria eu mesmo, e como já me conheço um pouco, certamente estaria absorto na leitura de um livro de Pedro Nava, de Machado de Assis de Eça de Queiroz ou de Paulo Coelho - quatro autores geniais, igualmente importantes e de alto nível literário, especialmente este último. Mas, o que seria de quem não gosta de ler? Sem dúvida estaria a ver televisão, sobretudo novelas. Tudo bem. Mas se levarmos em consideração não a inexistência prévia da Internet, mas, pelo contrário, se esta há muito tempo já existisse, todos fossem viciados, e ela subitamente desaparecesse para sempre. Será que as circunstâncias seriam aquelas mesmas?

O que seria, por exemplo, daqueles que querem ser escrevinhadores por riba de pau e de pedra - como é o meu caso - e não lembram ou nunca souberam a grafia correta de ascensão, assunção, acessório, ascensor, assessor, atraso, baliza, estender, extensão, espectador, expectativa, chuchu, imprescindível, gorjeta, extrapolar, jenipapo, mezanino, percalço, jia, e por aí afora, sem o Word para gritar na nossa cara: "Não é assim não, sua mula. É assim!" Certo que haveria os "Aurélios", mas muitas vezes estamos tão convictos de que "exceção" se escreve com duplo "S" que nem nos damos o trabalho de consultá-lo.

Ainda falando de escrevinhadores, será que iríamos nos resignar a ter de abdicar daqueles quinze minutos de fama quando nossos - pelo menos para nós mesmos - importantíssimos nomes apareciam no "Estadão", "Jornal da Poesia", "Anjos de Prata", "Blocos On-line", "AVBL", "Palavreiros", "Nave da Palavra", "Jornal de Crônicas", "A Arte da Palavra", "A Garganta da Serpente", "Alternância", "A Casa do Bruxo", "O Caixote", para citar apenas alguns dos mais destacados? Voltaríamos a ter "saco" para escrevinhar um texto do tamanho deste aqui amassando montanhas de papel durante um dia inteiro e depois ficar esperando que alguma revista se dignasse a publicá-lo no mínimo após noventa dias?

E aquelas mensagens que já estamos acostumados a enviar num piscar de olhos e ficar esperando no mesmo minuto pela resposta? Já pararam para pensar em escrever à mão, pôr num envelope, ir à agência mais próxima do correio, pegar uma fila para comprar o selo, outra para a postagem e ouvir aquela pergunta mais do que chata: "simples ou registrada?", apenas para se dizer a alguém que a amamos, e ficar a esperar duas ou mais semanas a fim de ler: "eu também", ou não receber resposta alguma, ou - o que é pior - "dá-te a respeito; te enxerga!"

Faz pouco mais de dois lustros, mas será que alguém ainda se lembra do tamanho das filas dos bancos quando o Color tomou posse e a poupança do povo? Em 1990 cheguei a passar mais de duas horas numa destas filas a fim de pagar uma mísera conta de luz, sob pena de ficar nas trevas, mercê do corte por falta de pagamento.

Já se parou para pensar em quantos milhões de amantes virtuais ficariam curtindo, simultaneamente, as suas dores de cotovelo, a solidão, os desejos prementes insatisfeitos? Pelo menos aqueles cujas contas bancárias não tivessem saldo suficiente para quitar uma conta telefônica mensal milionária?

Convém meditar sobre tudo isto em vez de ficarmos a amaldiçoar os "apagões" cibernéticos eventuais.

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