Mas havia as férias! Para cada um de nós era reservado, no salão
de estudos, um misto de escrivaninha e estante cuja tampa era levadiça,
e na sua face interna listávamos os dias dos meses que íamos riscando
a lápis todas as manhãs. Ainda hoje acho este procedimento inconseqüente,
pois só fazia incrementar a expectativa pelas férias e, por causa
disto, elas demoravam mais a chegar. O ideal maior de todo interno era a sua
chegada. A sensação que eu sentia no dia da saída poderia
ser comparada à de um prisioneiro de solitária que acabasse de
ser contemplado com trinta dias de plena liberdade. Apesar de a minha casa ficar
situada a apenas dezoito quilômetros, a viagem do Ateneu até
ela correspondia a um dia inteiro de aventuras. Naquele tempo não existiam
rodovias, a menos que se queira denominar a isto uma trilha estreita e esburacada
destinada ao tráfego de alimárias. À véspera do
primeiro dia das férias, descíamos ao porão a fim de pegar
e fazer as malas. Apenas esta trivial atividade equivalia a um prazer quase
orgástico. Mas é conveniente ficar bem claro que aquilo a que
chamávamos de mala era, na verdade, um baú de cerca de um metro
de comprimento por 50 centímetros de largura e outro tanto de profundidade.
Obviamente, os jipes os táxis daquela época se recusavam
a transportar aquela arca descomunal. Por causa disto, tínhamos de contratar
um carregador que, em virtude de residir nas proximidades do seminário,
detinha o monopólio de conduzi-las para a estação ferroviária.
Tratava-se de um cidadão negro, magro, aparentando entre 35 e 40 anos
de idade, rosto vincado pelos açoites da vida, porém com um sorriso
permanente nos lábios. Nunca soube o seu verdadeiro nome porque ele era
conhecido por um número: o Sete. Para mim a palavra Sete era sinal de
liberdade. O Sete representava tudo aquilo o que aquele vocábulo significa
e algo mais. O Sete era símbolo de comer bem, ir dormir tarde, acordar
idem, pé no chão, sotaina semidesabotoada (pois era considerado
um grave delito deixar de usá-la mesmo em nossa própria casa),
ler tudo o que se tinha vontade ou, simplesmente, nada fazer. Se eu fosse Delacroix,
teria pintado na tela A Liberdade Comanda O Povo- aquela que se
encontra no segundo pavimento da ala Richelieu do Museu do Louvre -, não
a linda mulher semidespida que conduz um estandarte, mas, no lugar dela, pintaria
o próprio Sete, sem nenhuma intenção de trocadilho. Quando,
ocasionalmente, o víamos passar, todos gritávamos em uníssono:
olha o Sete. Ainda faltavam mais de quarenta dias para a nossa saída,
mas o Sete já era abordado, assediado e contratado para carregar os nossos
baús.
Era curioso observar como tudo se invertia quando viajava de férias para
minha casa e quando voltava para o Ateneu, apesar de não
variarem os elementos. Durante a ida, o vapor da locomotiva tinha um cheiro
parecido com o do mormaço que subia da terra às primeiras bátegas
de chuva, após um longo período de secas; um cheiro de terra molhada;
de fumaça de sândalo queimando; um cheiro de alegria. Na volta,
o mesmo vapor cheirava a azinhavre, a ferro oxidado; a óleo de rícino
sendo extraído da mamona; era um cheiro de nostalgia. A simples oscilação
dos galhos das árvores às margens da ferrovia, também se
comportava de diferentes modos: quando ia para a minha casa, os galhos subiam
e desciam; desciam e subiam, me transmitindo a impressão de prolongados
gestos de aprovação; como se alguém levantasse e abaixasse
a cabeça querendo dizer: sim, sim, sim. Na volta, os mesmos galhos
pareciam também oscilarem, só que para os lados, como meneios
de cabeças humanas numa constante negação: não,
não, não. A própria onomatopéia do som da locomotiva
também se modificava completamente. Na ida, parecia me dizer claramente:
calma-lá-que-chega-já; calma-lá-que-chega-já;
calma-lá-que-chega-já. Durante o retorno, a maldita se ria
de mim e repetia sem cessar: acabou-se-o-que-era-doce; acabou-se-o-que-era-doce;
acabou-se-o-que-era-doce. Ainda bem que agora estou indo. Não vejo
a hora de reencontrar meus pais na estação; correr para casa com
aquela sensação de que tudo foi um sonho; que de lá nunca
mais sairia; tomar meu banho durante o tempo que bem quisesse e entendesse.
E agora mesmo estou sentindo o sabor das costeletas de porco assado com arroz
e farofa dágua que eu morto de fome comi na noite
das minhas primeiras férias.