A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Férias

(Raymundo Silveira)

Mas havia as férias! Para cada um de nós era reservado, no salão de estudos, um misto de escrivaninha e estante cuja tampa era levadiça, e na sua face interna listávamos os dias dos meses que íamos riscando a lápis todas as manhãs. Ainda hoje acho este procedimento inconseqüente, pois só fazia incrementar a expectativa pelas férias e, por causa disto, elas demoravam mais a chegar. O ideal maior de todo interno era a sua chegada. A sensação que eu sentia no dia da saída poderia ser comparada à de um prisioneiro de solitária que acabasse de ser contemplado com trinta dias de plena liberdade. Apesar de a minha casa ficar situada a apenas dezoito quilômetros, a viagem do “Ateneu” até ela correspondia a um dia inteiro de aventuras. Naquele tempo não existiam rodovias, a menos que se queira denominar a isto uma trilha estreita e esburacada destinada ao tráfego de alimárias. À véspera do primeiro dia das férias, descíamos ao porão a fim de pegar e fazer as malas. Apenas esta trivial atividade equivalia a um prazer quase orgástico. Mas é conveniente ficar bem claro que aquilo a que chamávamos de mala era, na verdade, um baú de cerca de um metro de comprimento por 50 centímetros de largura e outro tanto de profundidade. Obviamente, os jipes – os táxis daquela época – se recusavam a transportar aquela arca descomunal. Por causa disto, tínhamos de contratar um carregador que, em virtude de residir nas proximidades do seminário, detinha o monopólio de conduzi-las para a estação ferroviária. Tratava-se de um cidadão negro, magro, aparentando entre 35 e 40 anos de idade, rosto vincado pelos açoites da vida, porém com um sorriso permanente nos lábios. Nunca soube o seu verdadeiro nome porque ele era conhecido por um número: o Sete. Para mim a palavra Sete era sinal de liberdade. O Sete representava tudo aquilo o que aquele vocábulo significa e algo mais. O Sete era símbolo de comer bem, ir dormir tarde, acordar idem, pé no chão, sotaina semidesabotoada (pois era considerado um grave delito deixar de usá-la mesmo em nossa própria casa), ler tudo o que se tinha vontade ou, simplesmente, nada fazer. Se eu fosse Delacroix, teria pintado na tela “A Liberdade Comanda O Povo”- aquela que se encontra no segundo pavimento da ala Richelieu do Museu do Louvre -, não a linda mulher semidespida que conduz um estandarte, mas, no lugar dela, pintaria o próprio Sete, sem nenhuma intenção de trocadilho. Quando, ocasionalmente, o víamos passar, todos gritávamos em uníssono: “olha o Sete”. Ainda faltavam mais de quarenta dias para a nossa saída, mas o Sete já era abordado, assediado e contratado para carregar os nossos baús.

Era curioso observar como tudo se invertia quando viajava de férias para minha casa e quando voltava para o “Ateneu”, apesar de não variarem os elementos. Durante a ida, o vapor da locomotiva tinha um cheiro parecido com o do mormaço que subia da terra às primeiras bátegas de chuva, após um longo período de secas; um cheiro de terra molhada; de fumaça de sândalo queimando; um cheiro de alegria. Na volta, o mesmo vapor cheirava a azinhavre, a ferro oxidado; a óleo de rícino sendo extraído da mamona; era um cheiro de nostalgia. A simples oscilação dos galhos das árvores às margens da ferrovia, também se comportava de diferentes modos: quando ia para a minha casa, os galhos subiam e desciam; desciam e subiam, me transmitindo a impressão de prolongados gestos de aprovação; como se alguém levantasse e abaixasse a cabeça querendo dizer: sim, sim, sim. Na volta, os mesmos galhos pareciam também oscilarem, só que para os lados, como meneios de cabeças humanas numa constante negação: não, não, não. A própria onomatopéia do som da locomotiva também se modificava completamente. Na ida, parecia me dizer claramente: calma-lá-que-chega-já; calma-lá-que-chega-já; calma-lá-que-chega-já. Durante o retorno, a maldita se ria de mim e repetia sem cessar: acabou-se-o-que-era-doce; acabou-se-o-que-era-doce; acabou-se-o-que-era-doce. Ainda bem que agora estou indo. Não vejo a hora de reencontrar meus pais na estação; correr para casa com aquela sensação de que tudo foi um sonho; que de lá nunca mais sairia; tomar meu banho durante o tempo que bem quisesse e entendesse. E agora mesmo estou sentindo o sabor das costeletas de porco assado com arroz e farofa d’água que eu – morto de fome – comi na noite das minhas primeiras férias.

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