"Afortunado Jacinto, na verdade! Agora entre campos que
são teus e águas que te são sagradas, colhes enfim a sombra
e a paz!"
(Eça de Queiroz, A Cidade e As Serrras)
Outro fruto que me deram as vacas gordas - vacas dão frutos, sim, pelo
menos as minhas davam - foi uma quinta na montanha ao sopé da qual eu
vivia e labutava em quatro expedientes; pensando bem, não sei para que
servem quintas, seja em montanhas, seja no fundo do oceano, para quem cumpre
quatro expedientes a cada vinte e quatro horas. Mas naquele tempo já
existia um alvará de soltura chamado final de semana, o qual me
deixava livre de pelo menos três deles. Quanto ao quarto, aquele que não
é propriamente um expediente, mas um eterno plantão, a assistência
aos partos - acredito que quando Deus criou o modo pelo qual nascem os homens
não se encontrava presente nenhum representante dos parteiros fazendo
lobby a fim de que crianças só nascessem em horários pré-estabelecidos
-, os colegas às vezes se encarregavam de atendê-los e então,
"entre campos que eram meus e águas que me eram sagradas, eu colhia
enfim a sombra e a paz", apesar de esta colheita durar, no máximo,
vinte e quatro a quarenta e oito horas.
A minha Tormes não era tão vasta quanto a do Jacinto, mas
os seus exíguos domínios, para todos os fins, desempenhavam o
mesmo papel. A casa principal se situava à margem de uma vereda à
qual apelidavam de estrada e, isto que para outras pessoas poderia significar
desvantagem era, na verdade, para mim, um fator a mais de paz e de serenidade
por tornar mais efetivo o contacto com a natureza. Tratava-se de uma casa que
continha todos os pré-requisitos para uma estadia confortável,
embora destituída da sofisticação das modernas vivendas
que se situavam mais abaixo da esplanada onde estava edificada a minha. A frente
não exibia nada de excepcional; era uma destas fachadas de estilo indefinido,
não possuindo qualquer recuo, jardim, balcão, alpendre ou sacada,
mas logo ao entrar podia-se respirar aquele ar destituído de impurezas,
mas impregnado de doce aroma silvestre que soprava através da ampla varanda
situada na sua parte posterior.
O panorama era espetacular. Quando, em quinze de Julho de 1989 estive no Bois
de Boulogne, não vi nada muito mais esplendoroso do que a vista da
varanda da minha quinta, fosse porque esperava uma apoteose, fosse porque a
população de Paris inteira estivesse comemorando os cem anos da
Torre Eiffel e, não tendo encontrado ali vivalma, caminhei apressadamente,
observei muito pouco, não subi a nenhum mirante de onde se descortinassem
amplos horizontes, pois confesso que senti um pouco de medo de ser assaltado.
Por outro lado, o belvedere da minha quinta era deslumbrante. Como a maior parte
do terreno estivesse situada num plano bem inferior ao do alpendre, podia-se
obter uma visão ampla daquela pequena floresta que se estendia até
a linha do horizonte. Ao contrário das terras situadas na planície,
não importava a estação ou fase climática do ano
- o verde era o mesmo.
Foi dito que se tratava de uma pequena floresta e, de fato era, mas uma
floresta de fruteiras. Havia mangueirais, abacateiros, jaqueiras, cajueiros,
ateiras, bananais e inúmeras outras árvores tropicais o que tornava
aquele ecossistema triplamente aprazível, pois ele fazia bem à
mente, ao olfato e ao paladar. À primeira, porque o simples fitar daquela
paisagem funcionava melhor para os nervos do que valium; ao olfato, pela mistura
de odores daqueles frutos, todos exclusivamente tropicais, mas cada um a emanar
uma fragrância diferente, cuja mistura superava qualquer outro tipo de
aroma, pois era o olor da própria natureza. Satisfazia também
o paladar, pois aquelas mangas dulcíssimas, aqueles abacates polpudos,
aquelas frutas-do-conde cujas polpas se desmanchavam em contato com a boca,
enfim, cada um daqueles frutos, quando maduros, garantiam a nutrição
saudável e saborosa de qualquer ser humano. Enquanto isto, nós
apreciávamos aquele Éden embalados em amplas redes limpas,
alvíssimas, avarandadas e tecidas artesanalmente. Assim, embora durante
muito pouco tempo, pude desfrutar os mesmos prazeres experimentados por Jacinto
de Tormes - A Cidade e A Serra. Com a diferença de que eu obtive ambas
simultaneamente, enquanto ele só pôde alcançar a segunda
em detrimento de Paris.