"Meti o peito em Goiás
e canto como ninguém.
Canto as pedras,
canto as águas,
as lavadeiras, também"
(Cora Coralina: Cantoria)
Ao lusco-fusco da tardinha ninguém a via, mas sabia que ela vinha vindo
por causa de uma trouxa de roupas se deslocando "solta" no espaço,
tão esquelético era o corpo que a sustinha sobre a cabeça.
Tinha pavor de alma penada, embora o seu próprio vulto sugerisse uma
destas. Chamava-se Clementina, mas a vida não teve clemência alguma
para com ela. A impressão que se tinha era que nunca nascera, nem tivera
juventude; que sempre fora aquela mesma, pois os anos se passavam e nada nela
se modificava - nem mesmo a roupa que vestia. A tez era enrugada como a de um
cadáver de campo de concentração; a boca funda pela ausência
de dentes e pela magreza intensa, lembrava a de um funil ou o ralo de um lavatório.
Quando ventava forte, as pessoas temiam que ela fosse levada como uma folha
caduca de outono.
Não obstante esta aparente fragilidade, sobrevivia de lavar e passar
roupas. Caprichava no seu ofício. Começava com uma primeira lavada,
molhava a roupa suja na beira do rio, torcia o pano, molhava-o de novo, voltava
a torcer. Colocava o anil, ensaboava e torcia várias vezes. Depois enxaguava,
dando mais uma molhada. Batia o pano na pedra, e dava mais uma torcida e mais
outra, até não pingar do pano uma só gota. Somente depois
de feito tudo isso é que dependurava a roupa lavada na corda para secar.
Jamais ouviu falar em passar roupas a eletricidade. Sequer conhecia o significado
dessa palavra e nunca dela usufruiu qualquer benefício; nem mesmo o efeito
luminoso de uma mísera lâmpada incandescente. A passagem da roupa
era um afã ainda mais penoso do que a lavagem. O ferro era um tosco artefato
que parecia pesar tanto quanto ela e sacolejava cheio de carvão incandescente;
tinha de ficar quente a ponto de crestar a sua pele, tão fina que mais
se assemelhava a um pergaminho, mesmo que ela tomasse precaução
e dele guardasse uma certa distância. Para esquentá-lo tinha de
assoprar através de uma pequena janela traseira aberta especialmente
para este fim. O teste para avaliar a temperatura ideal era feito através
do toque da ponta de um dedo umedecido em saliva. Se chiasse um pouco, pronto,
estava na temperatura ideal. Quando passava disto, a ponta do seu indicador
só não luzia como um vaga-lume, mas resultava carbonizada tal
qual a cabeça de um palito de fósforo recém-usado. Sua
única reação era um "ai" mal sussurrado seguido
da introdução do dedo na boca para aliviar a dor da queimadura.
E eram peças e mais peças. Havia ternos, camisas, calças,
vestidos, anáguas, combinações; às vezes, até
rede ela lavava. Ninguém entendia de onde aqueles vestígios de
carne e ossos retiravam tanta energia. Só podia ser algo sobrenatural
que utilizava aquele corpo tão frágil como instrumento da sua
força, do mesmo modo que o Senhor tomou o ventre da Virgem para gerar
o Seu Filho. Quantas vezes vestíamos aquelas roupas lavadas e passadas
pela Clementina sem ter a menor idéia do quanto aquilo lhe custara. Talvez
avaliássemos o resultado do seu trabalho, não pela alvura das
peças brancas, pelo engomado dos colarinhos ou pelos vincos perfeitos
que ela deixava nas calças, senão pela miséria que ela
recebia em troca.
Assim como ninguém nunca ouviu falar do seu passado, do mesmo modo jamais
alguém soube como foi o seu fim. A única coisa que se sabe ao
certo é que ela não morreu. Deve ter se encantado, transformando-se
num beija-flor, numa borboleta, numa rosa ou noutro ser tão imponderável
quanto ela. Ou então subiu aos Céus carregada pelos anjos de Deus.
(16/06/2004)