A Garganta da Serpente
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Memórias De Um Paraíba

(Raymundo Silveira)

São cinco horas e quinze minutos da manhã deste três de julho de 2004 e eu me encontro abancando diante do janelão - com vista para o nascente - do meu apartamento. Enquanto escrevo, assisto a mais um crepúsculo matutino do Nordeste. Sim, são diferentes as alvoradas nordestinas! A aurora aqui é uma; as das demais regiões do Brasil são outras completamente diferentes. Conheço-as, sim! A propósito, conheço todas os alvoradas desde as do extremo leste do Mar Mediterrâneo, às do ponto mais ocidental das Américas. Por isso, posso falar de cátedra: as alvoradas nordestinas são ímpares. Nossa situação geográfica é ao mesmo tempo segregada e privilegiada pela natureza. Minha terra é vítima de um meio ambiente causticante e árido do ponto de vista climático. Mas, por outro lado, é dona de magníficas praias e de terras esplendorosamente ensolaradas.

Neste exato momento, os primeiros clarões do sol nascente iluminam o céu de Fortaleza e os seus raios rubramarelos se esbatem ao encontrar nuvens brancas e mudam para o róseo; das nuvens parecem brotar buquês de rosas e a impressão que tenho é a de que uma chuva de pétalas encontra-se preste a desabar. A minha emoção é tamanha que inspiro forte a brisa que sopra do mar e entra janeladentro, enquanto estufo o peito enchendo-o de ar puro e um orgulho imenso de ser nordestino não contém o meu sorriso de alegria.

Não poderia jamais começar a falar pela terceira vez desta cidade sem antes me referir a este prazer, a este orgulho, a este privilégio imenso que sinto ao viajar pelo Brasil, navegar na Internet ou até mesmo me encontrar no exterior e ouvir as pessoas me perguntarem de onde eu sou, pois costumo responder primeiro: "Modéstia à parte, sou de Fortaleza". Somente quando, na última circunstância, encontro alguém que não sabe onde ela fica situada e percebo o interesse do meu interlocutor é que acrescento: "F - O - R -T - A - L - E - Z- A, the most beautiful and peaceful city of Brazil. Brazil is the biggest country of South América and its capital is Brasília, not Buenos Aires". Resido num bairro chamado Aldeota. Quando vim para Fortaleza em 1962, também residia. Contudo, esta Aldeota de hoje está para a daquele tempo, assim como a Terra está para a Lua, se não mais. A Casa do Estudante - onde morei - ficava na Aldeota, mas se podia ir de lá para a Praça do Ferreira, em pouco menos de quinze minutos de caminhada. Daqui de onde me encontro para a mesma Casa do Estudante se gasta também quinze minutos, mas indo-se de automóvel e supondo que seja num dia de domingo à tarde e não existam sinais luminosos de trânsito a obedecer.

Esta Fortaleza, portanto, não é a mesma de década de 1950, nem a da de 1960, do mesmo modo que quem escreve isto nada tem a ver com aquele menino de oito anos, nem com o moço de vinte e cinco, exceto por este cabedal de lembranças que não o larga por um minuto sequer. Minha cidade está tão linda que durante o período de férias ainda não tem como acomodar, como o seu povo hospitaleiro gostaria, as tantas gentes que vêm de todas as paragens do mundo para admirá-la.

Agora já se pode dizer: Fortaleza é uma metrópole. Não tão calma quanto desejaríamos que fosse, mas mesmo assim uma das mais pacíficas do Brasil, como costumo falar para os gringos quando me encontro no exterior, conforme disse linhas atrás, sem correr o risco de mentir. Do mesmo modo que o Nordeste, como um todo, costuma exportar Presidentes da República, Fortaleza tem por hábito exportar pessoas trabalhadoras, cultas e competentes. Ela e sua gente têm orgulho, por exemplo, de terem exportado para a Academia Brasileira de Letras a primeira MULHER escritora deste país e para a capital do Império, o primeiro grande romancista do Brasil, para ficarmos apenas com estes dois nomes, pois o que estou pretendendo escrever é uma crônica e não uma lista telefônica.

A Capital do Ceará é uma das dez maiores metrópoles do país e desponta como um dos destinos turísticos mais procurados por brasileiros e estrangeiros. Seu novo aeroporto internacional serve de portão de entrada para todo o Nordeste. Aqui é também um dos lugares onde a cultura é mais incentivada neste pobre país sem cultura. Este texto também não comporta arrolar os pontos de referência culturais de Fortaleza, porque não se está intentando escrever um Guia de Viagens. Se algum dia, eu tivesse tido a infelicidade de deixar a minha terra a fim de emigrar para outras paragens mais inóspitas - como vejo fazerem muitos dos meus irmãos nordestinos, pois o direito de ir e vir, pelo menos por enquanto, ainda não foi revogado neste país -, eu não estaria escrevendo uma crônica a esta hora da manhã; mas supondo que estivesse, gostaria de terminar assim: "Ah, Fortaleza! Não me deixa morrer sem antes fitar pelo menos mais um daqueles espetáculos que são os teus maravilhosos arrebóis".

(03/07/2004)

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