A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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1974

(Raymundo Silveira)

Quem não conhece bem o Nordeste e escuta as letras das toadas, dos xotes, dos baiões, dos maxixes, das emboladas, e de outras canções nordestinas - principalmente aquelas que ficaram famosas na voz de Luiz Gonzaga - fica convencido de que esta terra está constituída por um meio ambiente e um universo climático bipolar: de um lado, as secas prolongadas que trazem muito sofrimento e, de raro em raro, os períodos chuvosos que levam muita fartura e fazem a alegria e a felicidade de todos os sertanejos. De um modo geral é assim mesmo. Porém, de vez em quando os céus entendem de virar geograficamente o Brasil de cabeça pra baixo, do mesmo modo como ameaçou fazer no plano político determinado ditador. Durante boa parte do ano de 1974 foi assim.

A partir de fevereiro / março aquele céu onde antes brilhava o sol o tempo inteiro começou a ser encoberto por nuvens cada vez mais densas e escuras numa velocidade sempre crescente, umas pulando e deslizando sobre as outras, como acontece com as ondas durante as preamares que vão desabar na costa em violentas ressacas. Com a diferença de que estas quebram sobre as praias em sentido horizontal, mas aquelas "marés diretas" de cúmulos-nimbos estavam prestes a desabar sobre nós como se fossem líquidos cometas. As chuvas começaram de "mansinho" a partir de fins de dezembro, princípios de janeiro e daí em diante foram se tornando de "monção", transformando o leito dos rios, dantes tórridos como um deserto, em vias navegáveis e mais tarde em verdadeiros oceanos de água doce até alagar tudo a quilômetros de distância de suas margens como num dilúvio. O sertão estava, literalmente, virando mar.

Chovia todo dia o dia todo e a noite inteira e eram chuvas para todos os gostos: com faíscas elétricas, ora sinuosas, ora riscando as nuvens em ziguezague, ora fendendo os ares altabaixo como se fossem demônios de fogo e quisessem partir ao meio a Terra inteira e o zimbório celeste seguidas, depois de breve intervalo, de trovoadas raivando no chão e assustando todo mundo, pois eram que nem o troar, ao vivo, dos canhões das batalhas da Segunda Guerra ou os rugidos dos abalos sísmicos que assistíamos no cinema. Mais tarde parecia que a chuva ia parar, mas logo engrossava de novo. Ou então eram apenas garoas, chuviscos, chuvisqueiros, chuvisquinhos, chuviscados fininhos, mas persistentes que a gente achava que não dava pra molhar muito, mas encharcavam as roupas e os sapatos daqueles que se aventuravam a sair às ruas sem capas, guarda-chuvas e galochas; depois tornava a engrossar e os pingos tangidos pelos ventos caíam obliquamente, ora prum lado, ora pro outro, ora pra Sul, ora pra Norte, ora pra Leste, ora pra transoeste; depois abria um pouco o tempo, surgiam uns fiapos de raios de sol, casava a raposa, descasava logo mais para em seguida desabarem novamente aquelas montanhas d'água que ao caírem sobre o solo escorriam por tudo quanto tivesse inclinação no rumo do leito do rio, levando de roldão em sua fúria, casebres, automóveis, animais, árvores arrancadas pelo tronco e tudo que ousasse lhes servir de obstáculo em sua correria louca para o mar, utilizando furiosamente o Acaraú como rota de fuga arrebatada.

A enchente não discriminava ninguém: pobres, ricos e remediados sofriam as conseqüências da intolerância do rio a tanta água enquanto cada vez chegava mais. Como sempre, porém, os desvalidos da sorte eram os mais gravemente afetados. Os tetos de suas casas ficavam completamente imersos e embarcações diversas trafegavam muito acima de suas cumeeiras; mas, à medida que se distanciava das margens do rio, tudo também ficava parcial ou totalmente submerso - mansões, casas de campo, casas comuns, casas comerciais, igrejas, fábricas, instituições oficiais, hotéis e hospitais. Numa determinada maternidade as mulheres pariam sozinhas porque, quando foram internadas, a equipe de plantão já estava de saída e os médicos e enfermeiras que iriam substituí-la já encontraram o edifício sob um nível de água que lhes chegava ao pescoço e a maioria não se atrevia a atravessar a nado aquele "mar" a fim de irem aparar meninos naquela "ilha" recém-nascida, plena de recém-nascidos ou de crianças por nascerem. Documentos importantes foram destruídos; um Posto Médico ficou dois meses sem funcionar e permaneceu durante mais de um ano portando manchas e um cheio enjoativo de bolor; outras repartições públicas, também; mesmo um ano depois, ainda se podia sentir o odor rançoso do mofo acumulado em carpetes, tapetes, cortinas e papéis importantes que se tentava desesperadamente preservar naquela "era" desinformatizada.

Todavia, o prejuízo maior foi a perda de vidas humanas. Morreram várias pessoas afogadas, inclusive gente que sabia nadar como aconteceu com um dos soldados do corpo de bombeiros - carregado pela correnteza - que tentava resgatar o que ainda restava da teimosa população ribeirinha que tinha tido o atrevimento de ainda permanecer nas imediações do que antes foram as suas casas, na vã tentativa de salvar os seus parcos haveres e animais domésticos, inclusive os de estimação. Morriam também pessoas devido a causas indiretas como as vítimas de choques elétricos de alta voltagem e outros acidentes.

Terra estranha, esta minha. Pouco tempo depois sobrevieram cinco anos seguidos de seca feroz quando não caía um pingo de água e o abastecimento da população foi sustentado precariamente através de carros-pipas contratados pelo governo. Em maio de 1983 este escrevente demandou terras litorâneas intentando sufocar saudades das praias atlânticas. Ao se retirar, depois de mais de duas horas de sol, mergulhos, "surfs" e outras estripulias marítimas, quase virou uma estátua de sal - mesmo sem cair na tentação de olhar pra trás uma única vez, como ousaram fazer os inditosos habitantes de Sodoma -, pois não dispunha sequer de uma gota de água doce para molhar os lábios.

(11/07/2004)

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