Não obstante se tratar de um truísmo, não deixa de ser
curiosa a circunstância de nos recordarmos com exatidão, aonde
nos encontrávamos e o que fazíamos ao tomar conhecimento de certos
acontecimentos inesperados e de grande repercussão. Porém, mais
do que curiosas, são surpreendentes as livres associações
que fazemos entre a notícia e certos pormenores relacionados à
nossa vida pessoal tais como ambiente, pessoas, objetos, emoções,
senso-percepções, isto é, detalhes aparentemente vulgares
que talvez jamais nos lembrássemos se não estivessem vinculados
àquele fato notório.
No dia em que Getúlio Vargas se matou eu tinha dez anos e acabara de
chegar das aulas da manhã, quando obtive a informação.
Pois creiam que sou capaz de descrever minuciosamente cada detalhe do que estava
acontecendo comigo e com outras pessoas ao meu redor naquela ocasião.
O quintal da casa onde eu morava tinha fundos correspondentes com a frente da
minha escola e era pelo seu portão principal por onde passávamos
na ida e na volta. O terreno era vasto; correspondia a mais da metade da área
construída do imóvel e tinha parte da sua flora e fauna constituída
por um misto de pomar, horta, granja e jardim. As ateiras se misturavam com
as roseiras. Os troncos das outras árvores frutíferas eram serpenteados
de trepadeiras. Havia, além do galinheiro que ficava ao fundo, canteiros
de hortaliças, tomateiros e muitas outras plantas de porte semelhante
a este, entre os quais uma delas que produzia um fruto que até hoje só
vi dar na minha aldeia. Seu nome original é canapu,
mas a nós ele só atendia pela graça de canapum.
Tinha o formato de uma pequena campânula, cujo envoltório era constituído
de uma película foliácea, contendo ar e um diminuto núcleo
esférico que quando maduro era comestível, pelo menos para nós,
pois o seu sabor era idêntico ao do tomate e diziam conter muitas vitaminas.
Os canapuns verdes, nós soprávamos por um orifício
que ficava no seu ápice e os estourávamos na testa apenas para
ouvir o estalo, como se faz ainda hoje em dia com aqueles fragmentos de balões
de aniversário.
Como o terreno era enorme, um cidadão da minha aldeia cuja figura folclórica
já foi alvo de várias crônicas que escrevi aqui na Internet
seu Manuel Soares - pediu ao meu pai para cultivar
um roçado de milho na parte posterior do quintal. No dia da morte do
Getúlio, quando eu saí para a escola, o seu
Manuel Soares estava capinando o terreno, preparando-o para o plantio. Havia
outro cidadão que morava naquelas imediações e se chamava
Luís, cujo sobrenome ninguém sabia, mas, por uma incrível
coincidência e embora ele não atendesse - pelo contrário,
ficava puto da vida -, só o chamavam de Luís Canapum.
No dia 24 de Agosto de 1954, minhas aulas terminaram mais cedo, mas eu ainda
não sabia por quê. Saí da escola com a sensação
de quem estivesse preso e tinha sido posto em liberdade condicional. Quando
cheguei ao portão do quintal da minha casa seu Manuel
Soares, muito cansado e encharcado de suor, continuava no seu labor. A assistir
aquilo, seu Luís Canapum imóvel, braços
cruzados, muito atento, como se estivesse adorando aquela cena. No exato instante
em que eu ia entrando ele falou: Fazendo o que aí Soares?
Este nem levantou a cabeça para espiar: Comendo os maduros e estralando
os verdes na testa - falou. E continuou a capinar.