A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Agosto, 24, 1954

(Raymundo Silveira)

Não obstante se tratar de um truísmo, não deixa de ser curiosa a circunstância de nos recordarmos com exatidão, aonde nos encontrávamos e o que fazíamos ao tomar conhecimento de certos acontecimentos inesperados e de grande repercussão. Porém, mais do que curiosas, são surpreendentes as livres associações que fazemos entre a notícia e certos pormenores relacionados à nossa vida pessoal tais como ambiente, pessoas, objetos, emoções, senso-percepções, isto é, detalhes aparentemente vulgares que talvez jamais nos lembrássemos se não estivessem vinculados àquele fato notório.

No dia em que Getúlio Vargas se matou eu tinha dez anos e acabara de chegar das aulas da manhã, quando obtive a informação. Pois creiam que sou capaz de descrever minuciosamente cada detalhe do que estava acontecendo comigo e com outras pessoas ao meu redor naquela ocasião. O quintal da casa onde eu morava tinha fundos correspondentes com a frente da minha escola e era pelo seu portão principal por onde passávamos na ida e na volta. O terreno era vasto; correspondia a mais da metade da área construída do imóvel e tinha parte da sua flora e fauna constituída por um misto de pomar, horta, granja e jardim. As ateiras se misturavam com as roseiras. Os troncos das outras árvores frutíferas eram serpenteados de trepadeiras. Havia, além do galinheiro que ficava ao fundo, canteiros de hortaliças, tomateiros e muitas outras plantas de porte semelhante a este, entre os quais uma delas que produzia um fruto que até hoje só vi dar na minha aldeia. Seu nome original é canapu, mas a nós ele só atendia pela graça de canapum. Tinha o formato de uma pequena campânula, cujo envoltório era constituído de uma película foliácea, contendo ar e um diminuto núcleo esférico que quando maduro era comestível, pelo menos para nós, pois o seu sabor era idêntico ao do tomate e diziam conter muitas vitaminas. Os canapuns verdes, nós soprávamos por um orifício que ficava no seu ápice e os estourávamos na testa apenas para ouvir o estalo, como se faz ainda hoje em dia com aqueles fragmentos de balões de aniversário.

Como o terreno era enorme, um cidadão da minha aldeia cuja figura folclórica já foi alvo de várias crônicas que escrevi aqui na Internet – seu Manuel Soares - pediu ao meu pai para cultivar um roçado de milho na parte posterior do quintal. No dia da morte do Getúlio, quando eu saí para a escola, o seu Manuel Soares estava capinando o terreno, preparando-o para o plantio. Havia outro cidadão que morava naquelas imediações e se chamava Luís, cujo sobrenome ninguém sabia, mas, por uma incrível coincidência e embora ele não atendesse - pelo contrário, ficava puto da vida -, só o chamavam de Luís Canapum.

No dia 24 de Agosto de 1954, minhas aulas terminaram mais cedo, mas eu ainda não sabia por quê. Saí da escola com a sensação de quem estivesse preso e tinha sido posto em liberdade condicional. Quando cheguei ao portão do quintal da minha casa seu Manuel Soares, muito cansado e encharcado de suor, continuava no seu labor. A assistir aquilo, seu Luís Canapum imóvel, braços cruzados, muito atento, como se estivesse adorando aquela cena. No exato instante em que eu ia entrando ele falou: “Fazendo o que aí Soares?” Este nem levantou a cabeça para espiar: “Comendo os maduros e ‘estralando’ os verdes na testa” - falou. E continuou a capinar.

Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente