São Pedro era a maior cidade de Santa Cruz que, por sua vez, era o maior
país do continente. A população de São Pedro beirava
os dezesseis milhões de habitantes e uma parcela bem significativa deste
formigueiro humano era de imigrantes ou de descendente de imigrantes de outras
nações. Havia gente que veio, ou cujos ascendentes vieram, de
todos os cantos da face da Terra. Só o Produto Interno Bruto de São
Pedro era cerca de um terço de todo o resto do país.
Havia também uma corrente migratória interna, mas não era
vista com tão bons olhos quanto os imigrantes estrangeiros. Ou seja,
alguns dos próprios compatriotas dos petropolitanos, não eram
bem recebidos lá. As causas desta aberração são
múltiplas e mesmo não interessando muito para o propósito
desta história, poderiam ser resumidas num só conflito: os cidadãos
estrangeiros traziam dinheiro; os cidadãos supostamente compatriotas
da gente de São Pedro que emigravam pra lá iam à procura
de dinheiro.
São João da Carnaúba era também uma "cidade"
de Santa Cruz, mas não constava na maioria dos mapas. Até hoje
economista algum, nenhum antropólogo e nem ninguém entendeu como
aquele povo conseguia sobreviver.
O índice de criminalidade em São Pedro era diretamente proporcional
à concentração da sua riqueza nas mãos de poucos
cidadãos, mas isto era imputado aos imigrantes de lugares assemelhados
a São João da Carnaúba. Na verdade, era uma conseqüência
direta do amor acendrado que muitos cidadãos ricos de lá dispensavam
a um certo produto do qual os habitantes de São João da Carnaúba
nunca tinham sequer ouvido falar: um pó branco importado de outro país
e que modificava radical e artificialmente - supostamente para melhor - o comportamento
das pessoas.
João Sebastião da Conceição nasceu, cresceu e viveu
sem nunca ter saído de São João da Carnaúba, mas
até hoje nenhum nutricionista conseguiu dar uma explicação
científica para este fenômeno. Com efeito, naquela terra, durante
os meses de agosto a dezembro, ou em qualquer época dos anos de seca
brava o panorama era desolador. Tudo aquilo que antes era vegetação,
se resumia a um cipoal ressequido, sem o menor vestígio de clorofila.
A fauna se restringia a pequenos répteis e escassos roedores que a população
esfaimada devorava, no afã de obter um mínimo de suprimento de
carne em sua dieta. Quando havia chuvas, João plantava milho e feijão
e sua única esperança de sobrevivência era a colheita de
uma eventual safra substanciosa.
Uma boa parcela da população de São Pedro fingia tolerar
aquela avalanche de miseráveis a invadir a sua amada cidade, embora
se denunciasse subliminarmente através de atos falhos, das entrelinhas
dos seus escritos e de conversas com outros cidadãos de São João
da Carnaúba, cujos privilégios também discrepavam da maioria
miserável dos seus conterrâneos. Mas, havia pequenos grupelhos
inseridos entre a população de São Pedro que agiam abertamente
nos mesmos moldes da intolerância nazi-fascista que predominou na Europa
durante os anos de 1930 e parte dos de 1940. Márcio Carpaccio estava
entre estes.
Obviamente, João Sebastião da Conceição não
suspeitava de nada disto. Para falar a verdade, ele não sabia nem pra
que lado ficava São Pedro, mas mesmo assim decidiu ir morar lá
por causa dos maravilhosos cenários que via na TV - sim ele possuía
TV que era comprada quando as tais safras substanciosas permitiam-lhe pagar
intermináveis prestações mensais, mesmo em detrimento de
melhor nutrição para a sua família. Ele a mulher e os dois
filhos homens assistiam a espetáculos que nunca tinham imaginado sequer
em sonhos: gente bonita bem vestida, gente bonita pelada, gente bonita trepando
como coelhos; a abundância de alimentos sofisticados nas mesas do povo
de São Pedro. Tudo aquilo fazia João e sua família delirar,
suspirar, salivar. Como nunca houve ninguém para ensinar a eles que era
apenas fantasia, João e sua família pensaram que São Pedro
seria mesmo apenas o porteiro do céu e levou todo mundo pra lá.
Os contrastes entre João Sebastião e Márcio Carpaccio eram
maiores do que entre um habitante da corte celestial e um condenado do inferno.
Enquanto o primeiro não sabia falar a língua do seu próprio
país, o outro praticamente só falava gíria, algum dialeto
do seu grupo, ou usava o inglês como segunda língua. Ademais, João
não tinha sequer a menor idéia do planeta onde morava - ele nem
sabia o que significava a palavra planeta. Carpaccio, por sua vez, conhecia
o mundo inteiro; João, a mulher e os filhos só possuíam
uma roupa cada um, Carpaccio raramente repetia um terno; Carpaccio, quando tinha
um resfriado, ia aos médicos mais famosos, João, quando tinha
ferida braba, à rezadeira; Carpaccio respirava, João suspirava;
Carpaccio trepava, João usava a mulher; João era chamado de paraíba,
Carpaccio, de skin head. No entanto, por mais surrealista que pareça
esta situação, ambos tinham os mesmos direitos, eram regidos pela
mesma Constituição e, portanto estavam sujeitos, pelo menos teoricamente,
às mesmas leis, pois ambos eram santacruzenses
Em dezembro do ano que passou, um dos filhos de João Sebastião
da Conceição esteve completando um ano e seis meses de prisão
acusado de assalto a mão armada e até hoje ainda aguarda julgamento.
Enquanto isto é submetido freqüentemente a toda espécie de
violência física e psicológica. Encontra-se, inclusive,
ameaçado de morte.
Em dezembro do ano que passou, Márcio Carpaccio e seus companheiros estiveram
comemorando, em plena liberdade, um ano de uma ação que promoveram
num trem suburbano onde obrigaram o outro filho de João Sebastião
da Conceição a se atirar de um dos vagões sobre as proteções
laterais de uma ponte, estando a locomotiva a toda velocidade. Parece filme
de Luís Buñuel; não é. Mas poderia perfeitamente
servir de roteiro para Costa-Gravas.