A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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A Primeira Queda De Bicicleta Todo Mundo Esquece...

(Raymundo Silveira)

Eu não sabia andar de bicicleta! Minha mente ingênua, inocente, imatura, infantil e ignara, imaginava ser improvável ou mesmo impossível - perdoem a aliteração involuntária -, que algum veículo de duas rodas viesse a se sustentar se não tivesse o seu equilíbrio garantido por um centro de gravidade que não se apoiasse em, pelo menos, três elementos de sustentação. Há muito tempo eu já possuía um velocípede zero queda, cuja estabilidade contribuía para firmar ainda mais aquela minha convicção. Nem eu mesmo sei como aprendi a andar de bicicleta, tamanho era o meu medo e a certeza de cair, embora ainda não tivesse sido apresentado a Sir Isaac Newton, nem muitos menos à sua famosa lei que diz existir uma força que atrai todos os corpos na direção do centro da Terra. Mas, pensando melhor, não creio que este conhecimento interferisse na minha decisão de me escanchar pela primeira vez no selim de uma bicicleta em movimento, haja vista que, em Dezembro de 1968, eu já sabia que esta lei ainda estava em pleno vigor e mesmo assim, também pela primeira vez, me meti dentro de um avião da FAB, do tempo da Segunda Guerra Mundial, a fim de sobrevoar nada menos do que a selva amazônica, durante mais de oito horas.

Não obstante, aprendi a andar de bicicleta, mas infelizmente não num veículo zero queda como o meu velocípede. Pelo contrário. Estou agora lembrando muito bem de quando me montei numa delas, alguém deu um empurrão e eu saí pedalando sem cair. A despeito do medo, confesso que foi uma experiência maravilhosa. Apesar das minhas comparações meio assimétricas, foi uma sensação algo parecida com aquela que senti quando, encorajado pela confiança que meia dúzia de garrafas de cervejas são capazes de infundir em alguém predisposto, decolei da Praia do Futuro, em Fortaleza, num ultraleve, durante o carnaval de 1988.

Próximo da minha casa havia um posto de aluguel de bicicletas à moda dos postos de automóveis - que mais tarde viriam a atender pela graça de táxis - e do qual me tornei o cliente mais assíduo. Durante as minhas primeiras incursões, nada grave veio a acontecer e, aos poucos, fui me sentindo cada vez mais convencido da irracionalidade do meu temor de cair. Já conseguia até descer do alto de uma pequena ladeira sem me segurar nos guidões, somente para fins de memostração aos meninos que não sabiam fazer aquilo e, principalmente, para as meninas a quem eu já começava a querer exibir as minhas "penas de pavão". Entretanto, como repete sempre um certo comediante de TV, todo veículo de duas rodas trava uma luta contínua e sem tréguas contra os seus audaciosos condutores; na maioria das vezes, estes vencem - do contrário, há muito tempo não se fabricariam mais bicicletas e nem motocas -, mas o dia da caça, embora tarde, sempre acontece.

O dia da primeira derrota surgiu quando minhas algibeiras estavam completamente destituídas daquilo que mais se gosta que elas contenham e cuja função todo mundo acredita que seja exclusivamente servir de conteúdo para ele mesmo, isto é, dinheiro. Como já estava viciado (ou dependente) de passear de bicicleta, não me restou outra opção a não ser pedir uma emprestada. O meu mutuante foi condescendente, e até fez questão de me prevenir que os breques do seu veículo não eram do tipo convencional, ou seja, não possuíam as alavancas de acionamento junto às mãos, mas nos pedais. Foi esta a minha ruína; na justa ladeira que costumava descer e exibir o meu malabarismo de amador, subitamente procurei os freios e não os achei. O resultado foi um bruto tombo em que o meu esterno foi de encontro à ponta de um dos guidões, e acredito que devo a este osso estar agora a contar esta história. A violência foi tamanha que, se ele não existisse, a ponta daquele teria penetrado no meu tórax exatamente sobre aquela víscera oca que impulsiona o sangue e a quem todo apaixonado atribui a razão da sua dor.

Depois deste, ainda sofri vários outros tombos. Mas o que mais me faz lembrar bicicletas, não são estes acidentes fortuitos, e sim aquele dia em que ganhei a minha novinha em folha. Zero queda, portanto. Pelo menos por enquanto!

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