A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Reisado

(Raymundo Silveira)

Em todo lugar por onde andei, em cada texto folclórico que li, em todas as enciclopédias que consultei, chamava-se bumba-meu-boi, mas na minha aldeia o nome era outro - reisado. Com efeito, era (e talvez ainda seja, embora estando nos seus últimos estertores) um festejo popular que tinha, pelo menos teoricamente, o propósito de comemorar a visita dos três reis magos ao Menino Jesus. A minha curiosidade infantil transformava-me a cabeça num remoinho de dúvidas: o que significa "Rei Mago" (que a princípio eu entendia rei magro)? Por que somente eles três vinham de tão longe para visitar o Deus recém-nascido? Ouro, eu já sabia o que era; acho que foi uma das primeiras mercadorias a que fui apresentado; incenso, mais ou menos, por causa do cheiro duma fumaça que sentia na igreja; mas o que diabo era mesmo mirra? E a maior de todas: o que tinha a haver aqueles bailados grotescos, cômicos, dramáticos - cujas peripécias se desenvolviam acerca da morte e da ressurreição de um boi -, com aquela visita que Melchior, Gaspar e Baltazar fizeram ao Filho de Deus? Confesso que até hoje essa história fabulosa ainda não está de todo esclarecida para mim.

O que lembro muito bem é que meu pai nos proibia de nos aproximar de qualquer um destes espetáculos e eu não entendia muito bem por quê, até que fui assistir a um deles. Pra começo de conversa, atores e figurantes se encontravam quase todos embriagados, mas isso não justificaria aqueles vetos paternos, do contrário ele teria de proibir também desfiles carnavalescos, festejos juninos, festas de qualquer natureza ou então, simplesmente permanecermos, ainda que fosse por alguns instantes, nas dependências da sua farmácia, que, por acaso, ficava espremida entre os dois maiores e mais freqüentados botecos da minha aldeia.

Embora só tenha assistido a uma destas exibições do folk lore da minha terra, ainda me lembro nitidamente dos personagens e de algumas das suas performances. Havia a dona Ana, que o vulgo elidia para donana, cuja principal particularidade física era a exuberância disforme das ancas e da região glútea, à custa de uma almofada de fabricar rendas que a atriz, ou ator adaptava sobre as ditas regiões a fim de simular aquela aparência grotesca e que eu nunca tinha presenciado ao vivo, até Outubro de 2002 quando viajava num cruzeiro pelas Ilhas Gregas e deparei com uma "donana" ao natural. Aquilo me impressionou tanto que ainda hoje perco noites de sono procurando entender como ela se havia para adentrar o exíguo banheiro do camarote do navio e, sobretudo, para usar o diminuto vaso sanitário.

Existiam também papangus pais e papangus filhos e escutei um diálogo entre eles o qual, não sei por que cargas d'água, jamais me saiu da memória. Dizia o papangu filho: "Pai, me dê cinqüenta mil réis". Naquela época, com cinqüenta mil réis se comprava... O quê, meu Deus? Irei usar como padrão uma das mercadorias mais consumidas pela população da minha aldeia - sapatos fabricados sob medida. Pela manhã ia-se à sapataria e o sapateiro nos mandava pôr um dos pés, geralmente o direito, sobre uma resma de papel, traçava com um lápis um risco rente ao dedão, outro ao rés do calcanhar e nos mandava embora com a recomendação de vir apanhar o par às cinco da tarde. Lembro que o dono da sapataria tinha uma dúzia de filhos e cada um deles calçava apenas um dos pés, ficando o outro a simular frieira, enquanto o pé contralateral de um dos demais meninos, também permanecia calçado e o outro descalço. Com cinqüenta mil réis se comprava um sapato, digo melhor, um par de sapatos, e isto significa que com cinqüenta mil réis o sapateiro calçava dois filhos; como ele tinha doze, em cada leva de calçados poupava, portanto, trezentos mil réis. Ou seja, "casa de sapateiro, espeto de um pé descalço".

Contudo, assim já estou tendo, mais uma vez, fuga de idéias. O que queria mesmo era reproduzir o diálogo do papangu filho com o papangu pai, naquela noite de Janeiro dos anos 1950: "Pai, me dê cinqüenta mil réis!" "Quarenta, menino? Pra que tu quer trinta se tu num gasta nem vinte? Toma dez, dá cinco pra tua mãe, compra um maço de cigarro BB e não te esquece de me entregar o troco. Olha lá!"

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