A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Aventuras & Desventuras Natalinas

(Raymundo Silveira)

O percurso fluvial entre Manaus e Belém durou três dias, quatro noites e quase algumas horas de prisão, a bordo de um navio gaiola da ENASA; as últimas, por conta de mais uma farra e de alguns arruaceiros que também bebiam e entenderam que nós estaríamos ali exclusivamente a fim de ostentar status e esbanjar mordomias com a finalidade exclusiva de lhes provocar nada menos do que um dos pecados capitais. Não. Não se tratava de Manaus nem de Belém, mas o da inveja mesmo.

Quando me lembro dessa história associo imediatamente com aquela do pecador que foi se confessar cheio de culpa porque se considerava orgulhoso. "Meu filho, você é rico?" "Não, seu padre!" "Considera-se bonito ou inteligente?" "Não, seu padre!" "Detém algum poder, prestígio, ou destaque social?" "Não seu padre!" "Então, meu filho, você não é orgulhoso. Você só é besta. Mas pode comungar assim mesmo!" Seria o nosso caso se pretendêssemos exibir algum destes atributos a bordo daquela embarcação, pois até as nossas passagens foram literalmente arrancadas do Reitor da Universidade Federal do Amazonas, que pelo tempo que faz, já deve estar no Céu, pois ainda hoje, todas as noites antes de dormir, rezo pra ele.

Aquela foi a minha primeira viagem por água e, felizmente, ninguém do nosso grupo foi preso; os nossos provocadores foram, sim. E não por poucas horas, mas até chegarmos ao nosso destino. Em Outubro de 2003 minha filha e eu estivemos a bordo de outra embarcação que, durante também, por coincidência, três dias e quatro noites nos transportou pelo mar Egeu. Não estou comparando o luxo e nem o conforto entre o Aegean I e o nosso navio gaiola de 1968, mas apenas a segurança. Pouco depois da partida, um membro da tripulação do Aegean bateu no nosso camarote, entregou a cada um de nós um troço alaranjado e leve, mas cujo tamanho era o mesmo do de um bote salva-vidas e avisou que dentro de quinze minutos todos nós e os outros passageiros deveríamos comparecer, sem nenhuma exceção, num dos conveses. Enquanto isto o serviço de alto-falantes não parava de berrar em quatro línguas - duas delas eram inglês e espanhol porque as conheço, mas pelo tartamudeado do locutor as outras duas deveriam ser grego e alemão ou francês, sei lá -, a mesma cantilena do marinheiro. A princípio pensei que estariam nos gozando; depois fiquei ciente de que iríamos mesmo era a pique imediatamente.

Já tenho acumuladas quase tantas horas e milhas de barcos quanto de aviões; participei das instruções de segurança em todos eles, mas nunca havia assistido a mais de uma hora de aula sobre como me comportar em caso de naufrágio. Até parecia que iria acontecer mesmo algo igual ou pior do que sucedeu ao Titanic. Pois bem, no nosso gaiola da Amazônia não havia sequer botes salva-vidas. Coletes? Estão brincando? Nem sabia do que se tratava! Quando estava para ser apresentado a um deles durante a minha primeira travessia do Canal da Mancha, perguntei ao tripulante para que usar um colete se não haveria paletó para pôr em cima. O sacana pôs-se a rir.

Havia trajetos em que nossa vista não alcançava nenhuma nesga de terra; parecíamos estar em pleno oceano. Por outro lado, havia trechos - como durante o percurso pelo estreito de Breves - em que a velocidade era imperceptível, pois a embarcação deveria quase se encolher a fim de passar sem tocar as margens do rio.

As vilas e cidades ribeirinhas iam se sucedendo: Itacoatiara, Parintins, Óbidos, Santarém, Breves. Essa mistura entre nomes indígenas e lusitanos, naquela época não me chamou nenhuma atenção, mas quando estive pela primeira vez em Portugal, os nomes de algumas cidades fizeram-me relembrar aquela viagem de aventura estudantil. Aventura, sim; aliás, pior do que aventura, pois o Amir Klink que pode ser considerado o aventureiro mor do país, jamais se submeteria àquela (não há outro nome mesmo), àquela irresponsabilidade. Irresponsabilidade não só nossa, mas também de quem nos fez embarcar em Fortaleza numa aeronave militar de carregar pára-quedistas, sem que as passagens de volta estivessem garantidas. Éramos apenas um grupo de moças e rapazes ingênuos, sem nunca ter saído de casa a não ser para a faculdade, para a praia e, alguns, para o "curral" (depois eu digo o que era "curral"), e com o dinheirinho trocado e contado para ficarmos três ou quatro dias na cidade de Manaus. Acabamos ficando quinze e só ainda não estamos lá por conta do já dito e bendito reitor da Universidade de Manaus, por cuja alma eu ainda rezo todas as noites, apesar de não ser católico praticante, um padre nosso e uma avemaria, quando vou dormir.

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