A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Os "Sem-Copa" de 1970

(Raymundo Silveira)

"Vivia longe dos homens, só se dava bem com os animais".
(Graciliano Ramos: Vidas Secas)

Quais os brasileiros que teriam deixado de assistir ao vivo, pela televisão ou pelo rádio, à partida final entre as seleções do Brasil e da Itália ocorrida na cidade do México no dia 21 de Junho de 1970? Certamente, os mortos; os muito doentes; aqueles com incapacidade plena de senso-percepção, como por exemplo, os que eram, simultaneamente, cegos surdos e mudos; as criancinhas; provavelmente, os loucos e eu.

"Prefeito, hoje é Domingo; quanto a isto não há o menor problema porque estou habituado a dar plantões aos Domingos, mas... E o jogo?" "Nem se preocupe! Sairemos daqui muito cedo e prometo a você que na hora do jogo já estaremos cá. Eu mesmo estou mais interessado do que você em assisti-lo". Confiado nisto, nem um radinho de pilhas me lembrei de transportar. Da minha aldeia ao lugar para onde fomos naquele dia, distava apenas cerca de sessenta quilômetros, mas só tivemos acesso a ele depois de mais de duas horas de viagem num veículo semelhante àqueles que são envenenados, equipados e abastecidos para concorrerem ao rali Paris - Dakar. Não obstante a odisséia, enfim chegamos. Os "postos de atendimento" situavam-se em quartos sem qualquer iluminação, em cima das calçadas e, algumas vezes, no meio da rua. A quantidade de gente que queria ser atendida - a maioria para satisfazer uma mera curiosidade, pois os muito doentes mesmo, não conseguiam ter acesso ao doutor - era suficiente para lotar as arquibancadas de um pequeno campo de futebol. Por falar nisto, esqueci de incluir aquelas pessoas no rol das que não assistiram à partida final da Copa do Mundo de 1970, pois as únicas copas que conheciam eram as dos chapéus de palha que eles mesmos fabricavam.

Os habitantes daquela povoação nunca tinham tido antes a oportunidade de ver um médico, exceto aqueles que se deslocavam a cavalo para a sede do município. Se alguém se interessasse em conhecer os pormenores arquitetônicos do cenário daquele grotão perdido em fins-de-mundo, recomendaria que assistisse ao filme "Central do Brasil" do diretor Walter Salles, mas com a diferença de que aquela gente nunca apareceu em cinemas, jornais, televisões, rádios e tenho receio de que a maioria dos leitores duvide de mim e desconfie de que este texto não passa de fruto da minha imaginação. Bem, estou tratando de fatos concretos sucedidos em meados de 1970, portanto daquilo que vi há trinta e quatro anos. Quem sabe, os jovens que hoje moram lá estejam a ler agora este escrito na Internet, a comentarem-no entre si e a se rirem do seu autor, embora eu não acredite que algo tenha mudado substancialmente, pois o progresso tecnológico por si só não constitui garantia de civilização. As araras também falam; as hienas também riem e as corujas também são muito atentas, mas nenhuma delas sabe o que diz, do que riem, nem do que se passa ao seu redor. Obviamente, homens e mulheres humildes não são hienas, araras, ou corujas, mas os seus "donos" se empenham arduamente a fim de domá-los como tais.

Entre o meio dia e uma hora da tarde ainda me restava alguma esperança de assistir ao jogo pela televisão. Quando me preparava para entrar no tanque de guerra que nos trouxera, o prefeito foi abordado por um vereador cujo curral eleitoral se situava a mais de dois quilômetros dali. Não sei se chegaram a discutir porque estavam um pouco distantes, mas as fisionomias não eram indicadoras de nenhuma cordialidade. Depois de uns bons dez minutos de conversa apertaram-se as mãos e o prefeito veio ao meu encontro. "Que, infelizmente, não poderíamos deixar de atender; que era um dos seus maiores cabos eleitorais; que todo o nosso esforço teria sido inútil se não levássemos em consideração aquele pedido; que havia um senhor de mais de sessenta anos, prostrado há uma semana e gritando de dor". Este último foi o único argumento que me convenceu a acolher o apelo do prefeito e perder para sempre a ilusão de assistir, ao vivo, ao gol do Pelé, ao empate do Boninsegna e aos outros três: um do Gerson, um do Jairzinho e outro do Carlos Alberto. Como é que sei de todos estes detalhes se não vi o jogo? Porque já assisti, em replay, dezenas de vezes àquela partida e até hoje ainda não cessou a minha frustração.

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