A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Que Direi Eu Ao Nascituro?

(Raymundo Silveira)

"Que direi eu ao nascituro?"
(Carlos Drumond de Andrade)

Desde quando li este verso de Drumond jamais deixei de pensar nele uma única vez, sempre que tive em minhas mãos o corpo frágil de um recém-nascido a quem assisti nascer. Até hoje, quando encontro em algum lugar uma daquelas centenas de "crianças" - hoje mulheres e homens feitos - sinto um pouco de emoção e nunca deixo de dizer para eles: "estás vendo essas mãos? Pois foram elas que tocaram teu corpo pela primeira vez na tua vida". Voltando ao verso de Drumond: que direi eu, não mais ao nascituro, mas ao recém-nascido, o que dá no mesmo, ou até se torne ainda mais crucial a pergunta porque a viabilidade daquela existência já está consumada? O bebê já atravessou aquele perigosíssimo túnel de dez ou doze centímetros de dentro para fora do corpo de sua mãe onde antes dependia exclusivamente dela, mas agora terá de lutar para sobreviver à sua própria custa, mesmo que seja apenas sugando-lhe o peito para retirar o alimento.

Gostaria de poder dizer assim: "Bem-vindo! Acabas de chegar a um lugar onde nunca estiveste, mas no qual todos já estavam ansiosos pela tua presença. Há pouco mais de quarenta semanas tu eras Nada, agora és um Ser privilegiado; se dependesse de ti, jamais haverias de renunciar a tal prerrogativa. Serás feliz; a própria circunstância de estares aqui já é um dom tão especial que jamais possuirás outro de igual valia. A simples razão de existires já é a própria felicidade. Porém há outros motivos para te sentires feliz além de estares vivo. Estás cercado de pessoas que te amam. Depois do dom da vida, talvez seja este o mais importante de todos os outros - ser amado. Se tu pudesses compreender o que isto significa, duvido que nascesses, como de fato nasceste - chorando. Se te fora dado compreender o valor de ser amado, terias nascido sorrindo e te sentirias tão feliz quanto teres começado a existir".

"Com efeito, como tiveste a sorte de chegar a um lar onde és mais do que bem-vindo - és também muito amado -, talvez durante os teus próximos dez ou quinze anos continuarás assim, com maior ou menor intensidade. Além disto, dentre em breve conhecerás uma outra razão para te sentires ainda mais feliz, além de ter nascido e ser amado, pois terás um terceiro dom que jamais te deixará ficar triste, pelo menos por muito tempo - a esperança. Tu talvez nunca poderás aquilatar o real valor desta virtude. Será ela quem te fará sonhar acordado com um futuro grandioso. Será ela que, não apenas te fará sonhar, como também te sentires, de fato, o centro do universo, a ponto de teres todos os motivos para entoar os versos daquela canção de Collin Porter: I'm sitting on the top of the world".

Infelizmente, poucas vezes pude dizer algo parecido com isso a qualquer nascituro, quando já escutava o bater do seu coração através do ventre de sua mãe, ou diretamente a ele mesmo, já recém-nascido, enquanto o sustinha em minhas mãos - mãos que foram as primeiras a tocá-lo nesta vida, faço questão de reiterar. Muitos já nasceram provando o amargor da crueldade. Centenas sequer tiveram a ventura de ser bem-vindos ou a sorte de ter um pai. Muitos já chegaram marcados pela face desumana do destino, seja por trazerem consigo a sina de um mal congênito, seja por terem de ir conviver desde cedo com a infelicidade. Alguns terão mães loucas, pais alcoólatras, casa em lugar nenhum, ou algum pedaço de pão para aliviar a fome. Milhares enfrentarão a miséria, terão de ser internados em orfanatos, muitos se tornarão marginais ainda enquanto crianças. Todavia, seria impossível para mim adivinhar quais seriam estes infelizes. Então vamos supor que a todos eu dissesse aquelas palavras mágicas: vida, amor, esperança;. será que estaria dizendo a verdade a pelo menos um só deles? Muitos detêm, com efeito, a chance de ter tudo isto e, de fato os terão. Mas até quando?

Se não quisesse mentir ao nascituro teria forçosamente de preveni-lo: "escuta bem, a tua vida, como de resto a de todos nós, é a escalada de um rochedo cuja ascensão se dá pela face menos íngreme e cuja descida - sempre fatal - ocorre pelo outro lado. Com a diferença de que este último se encontra a pique; faz ângulo de noventa graus com a superfície do solo. Somos todos, por conseguinte, alpinistas natos e compulsórios. A subida é lenta, quase sempre penosa, e às vezes nunca se alcança o ponto culminante. A infância é a fase dos preparativos. Nela não há temor, cansaço nem desânimo. Sentimo-nos o centro de tudo e achamos que o mundo está todo concentrado em nós outros. A primeira fase da escalada corresponde à juventude, onde tudo é entusiasmo e esperança. Daí até o terço superior do penhasco, é a maturidade; estamos, nesta altura, transitando da terceira para a quarta década. Entre a quinta e a sexta, atingimos - ou não - o topo, quando descobriremos a quase inutilidade de tantos esforços. Afinal, para que tudo isto? Daí em diante é a descida; rápida para alguns, moderada ou lenta para outros, todavia, nunca revogável."

Porém, teria eu o direito de dizer tudo isto àquele bebê? De podar-lhe a esperança pela raiz mal tendo acabado de chegar a este planeta? Por outro lado teria também o direito de mentir para ele? Em outras palavras - "Que direi eu ao nascituro?"

(28/03/2004)

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