Hoje estou completando sessenta anos e este é um dia a ser muito lembrado,
mas não pelos motivos fúteis com que se costuma comemorar aniversários.
De fato, por este lado, esta seria uma data a ser rememorada com algum desalento.
Com efeito, durante estes doze lustros não vi nada que valesse a pena
acontecer, exceto o nascimento das minhas três filhas que, não
por acaso, hoje não estão comigo. Contudo, nem este tal desalento
sou capaz de experimentar. Hoje completo sessenta anos e estou surpreso porque
jamais imaginei que esta data pudesse acontecer para mim. Na verdade, hoje completo
seis décadas de existência e me custa muito acreditar que isto
não se trata de um sonho. Não um sonho na acepção
romântica que se costuma imputar a esta palavra, não:- simplesmente
um sonho como outro qualquer.
Quando se tem vinte anos e se ouve dizer que outra pessoa completou sessenta,
o mais comum é se indagar: "como e por que teria vivido tanto?"
Por outro lado, quando alguém completa sessenta, geralmente percebe que
viveu muito pouco e que ainda há tempo demais pela frente. Pois comigo,
como sempre tem acontecido, sucedeu tudo de modo diverso. Não foi por
acaso que percebi ser uma pessoa diferente ainda durante a puberdade.
Aos 25 anos sentia que já teria vivido bastante; nunca consegui me imaginar
com quarenta ou cinqüenta anos e agora, aos sessenta, me sinto um sobrevivente.
Por quê? Juro que não sei, embora tenha as minhas próprias
desconfianças.
Normalmente, qualquer pessoa só depara com o jogo duro da vida por volta
dos dezoito anos, idade em que se inicia aquilo a que se convencionou chamar
de juventude. Pois bem, não posso dizer que sei exatamente o que significa
esta palavra porque, sob todos os aspectos concernentes àquilo a que
se chama de uma vida adulta, esta começou efetivamente para mim,
muito antes do tempo que se costuma estabelecer para o seu início. Aos
dezesseis, já trabalhava em funções mais adequadas a gente
de trinta, ou mais. Era encarregado de fazer o alistamento militar dos homens
convocados para prestarem o serviço militar no Tiro de Guerra 254. Ali
fazia quase tudo, exceto, naturalmente, comandar. Houve, inclusive, em 1961,
um breve período em que cheguei a receber ordens a fim de participar
do processo de mobilização de pessoal quando se estabeleceu uma
crise institucional que se seguiu à renúncia do presidente Jânio
Quadros e o consenso entre alguns militares era impedir que assumisse a presidência
o vice João Goulart.
Obviamente, não seria eu o responsável pela operação,
mas iria caber a mim providenciar alojamento, alimentação e toda
a infra-estrutura necessária ao aquartelamento da tropa, ou pelo menos
assim eu entendi mediante os sucessivos memorandos que me eram endereçados.
Felizmente, venceu o jeitinho brasileiro e o vice assumiu sob certas condições
que incluía o regime parlamentarista. Ainda hoje estou por acreditar
que aquela tarefa seria mesmo confiada a mim, um menino de 16 anos; mas que
recebi, por escrito, as diretrizes é fato (quase) histórico. Desconfio
que as autoridades militares que encaminhavam aqueles memorandos ignoravam absolutamente
a idade do destinatário. Pena que não tenha conservado em meu
poder, cópias daqueles documentos. Aliás, a falta de conservação
de papéis importantes e de outras relíquias da minha vida é
uma das minhas maiores frustrações.
No ano seguinte fui nomeado por João Goulart - a quem teoricamente teria
contribuído a fim de impedir que assumisse a presidência -, para
o cargo de Estafeta nível 7 do então Departamento dos Correios
e Telégrafos. Estava com dezessete anos, não tinha a menor idéia
do que significava a palavra estafeta, mas pelos comentários divulgados
em toda a minha aldeia deveria se tratar de algo muito precioso, pois foi na
época desta nomeação que mais me cumprimentaram durante
toda a minha existência. Muito mais do que por ocasião da minha
primeira comunhão, sucedida dez anos antes, e também do que na
época da minha colação de grau em medicina, acontecida
nove anos mais tarde. Foram naqueles dias que se seguiram à tal nomeação
que me senti a pessoa mais poderosa da face deste planeta e me considerava sentado
sozinho no seu topo.
Não vou repetir aqui a lengalenga da minha saga telegráfica; apenas
reiterar que trabalhei durante nove anos no "cobiçado" cargo
de estafeta que significava nada menos do que caminhar durante seis horas
diárias, sob o sol ou sob a chuva. Portanto, aquilo a que as demais pessoas
chamam juventude foi na verdade, para mim, uma caminhada íngreme e tortuosa
em direção ao status pequeno-burguês, o qual, de fato, alcancei
aos trancos e barrancos. Mas no dia da minha formatura não me sentia
nem um pouco uma pessoa jovem, pelo contrário, parti para o interior
do Estado a fim de enfrentar uma luta sem tréguas como se já fosse
um homem maduro e casado, pois me tornei arrimo da família dos
meus pais. Aos vinte e seis anos, portanto, nunca consegui me imaginar com 40,
50, nem muito menos, com 60 anos. Para mim, muito mais da metade da minha vida
já teria se escoado.
Pois é, hoje chego aos sessenta anos e não sinto qualquer emoção
parecida com aquelas que costuma sentir a maioria dos mortais. Se essa expressão
não tivesse ganhado foros de qualificação pretensiosa,
acrescentaria: "dos mortais comuns". Ao completar sessenta
anos não estou triste nem alegre; não estou feliz, nem infeliz.
Estou perplexo.
(18/02/2004)