A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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O ERRO E A LIçãO

(Raymundo Silveira)

"Errar é humano; perseverar no erro é diabólico". Desde criança ouço citarem este provérbio e, como quase toda criança, nunca questionei um adulto; muito menos os seus provérbios. Porém, houve uma época da minha vida a partir da qual passei a desconfiar de tudo. De provérbios, inclusive. Ou principalmente. Há muitos deles que não fazem o menor sentido, e sobre isto já escrevi aqui um comentário. Não é o caso deste que está escrito aí acima (ou em cima?). Só que ele me parece incompleto. Na minha ótica deveria ser assim redigido: "Errar é humano; perseverar no erro é diabólico e não aprender com ele é burrice".

"Doutor, o diretor quer falar com senhor no gabinete dele". Pronto, pensei, estou ferrado. Não foi propriamente ferrado porque naquela época esta gíria não existia ainda, mas foi algo equivalente. "Lascado", talvez. Eu cursava o segundo semestre do sexto ano de medicina e nunca tinha sido chamado ao gabinete do diretor. "Doutor, mandei-o chamar aqui porque..." Entrou uma secretária. Esta demorou conversando com o chefe os cinco minutos mais longos e tormentosos da minha existência. A primeira coisa em que pensei foi nas carraspanas que tomava, todos os sábados depois das provas e sabatinas, nas imediações da faculdade. E tinha tudo para ser isto mesmo. Circulavam rumores entre os alunos segundo os quais, durante a última reunião da Congregação de Professores ocorrera o seguinte episódio. "Convoquei esta reunião da egrégia Congregação da honorável Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, porque se comenta um fato muito lamentável. Determinados professores, em pleno horário das aulas, estariam bebendo acompanhados de alunos nos bares adjacentes e..." Só teve tempo de falar isto. Neste exato momento o "certos professores" ali presente, e que já deveria se encontrar naquela fase em que, segundo Humphrey Bogart, a humanidade deveria permanecer para sempre - ou seja, com três doses de uísque na cachola -, se levantou, e falou assim: "Negativo. Não é em bares adjacentes não, é aqui mesmo, ó!" E sacou do cós da calça um vasilhame, abriu-o, levou-o à boca, e entornou ali mesmo, na frente dos seus colegas, todo o conteúdo. Obviamente, um escândalo igual àquele, jamais poderia permanecer confinado às quatro paredes daquela sala. Pouco antes disto ocorrera outro fato semelhante, por conta do qual corria um processo administrativo. Cinco plantonistas da Pediatria "por decisão unânime da maioria" (Decisão unânime da maioria é bom demais, mas era assim mesmo que constava em suas defesas nos autos do processo), "por decisão unânime da maioria" acharam por bem ir tomar "um cafezinho" nos "bares adjacentes", em plena madrugada. Na verdade utilizaram xícaras de café, mas com duas diferenças fundamentais quanto a "tomar um cafezinho": primeira, o conteúdo das xícaras era cachaça; segundo, em vez de um, foram mais de meia dúzia de "cafezinhos". Quando retornaram ao hospital as enfermeiras estavam em polvorosa. "Doutor, o menino do 14 (menino do 14 não é o nome de uma criança, entendam, por favor), o menino do 14 faz meia hora que se esgoela com uma dor de barriga; a menina do 12 vomita mais do que passarinho que comeu angu de farinha d'água; e um recém nascido do berçário está ficando roxo". "Pare! Também não estamos a passar muito bem. Dê 20 gotas de amplictil a cada um, indistintamente!" Vinte gotas de amplictil são suficientes para deixar grogue qualquer adulto!

Já estava me preparando para cair de joelhos aos pés do "diretor careca", e implorar o seu perdão (com medo que ele não entregasse mais o meu "canudo de papel"), quando ele reiterou: "Mandei-o chamar aqui porque... Você me escreveu um requerimento 'solicitando a Vossa Senhoria', no caso eu, 'que se digneis mandar expedir uma declaração de pobreza, digo melhor, uma declaração de matrícula'." Como brevemente Vossa Senhoria se dignará a ser um ex-aluno desta heráldica Escola, seria uma vergonha para ela se o senhor continuasse a escrevinhar em caçanje, que, pelo menos por enquanto, ainda não é o idioma oficial deste país e...Blá, blá, blá". O meu alívio foi maior do que o de um condenado à forca, cuja sentença acabasse de ter sido comutada. Pois bem, soube que escrevi errado mas não aprendi a lição. Afinal, se "se digneis mandar" está errado, o correto acaso seria "vos digneis mandar", ou nem um e nem outro? Não sei! Mas por causa do meu erro acabei encontrando um assunto para estas minhas escrevinhações cotidianas. Ou quotidianas?

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