A Garganta da Serpente
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A lógica dos bêbados

(Raymundo Silveira)

De acordo com Balzac existiria um tipo diferenciado de lógica a que ele chamava "lógica de todas as mulheres" e que nada teria a ver com as definições que os dicionários costumam dar a este vocábulo. Para quem está escrevendo este texto, a palavra lógica sempre esteve associada aos princípios que regem o raciocínio e a coerência. Sob este ponto de vista ela sempre foi preocupação quase que exclusiva dos filósofos. Assim existiria uma lógica de Aristóteles, outra de Descartes, de Kant de Schopenhauer, de Nietzche e assim sucessivamente. Hoje estive cogitando na existência de outra modalidade de lógica que também seria exclusiva de um determinado grupo humano: a "lógica dos bêbados". Ninguém se assuste, pois se esta palavra estiver ligada essencialmente ao raciocínio e à coerência, como se presume, nada mais lógico do que o raciocínio e a coerência de um ébrio. É muito fácil demonstrar, na prática, esta afirmação. Sente-se ao seu computador e escreva, sem haver ingerido uma gota de álcool, um texto sob o seguinte tema: "Desenvolvimento Humano e Progresso Tecnológico". Depois entregue-o a uma pessoa e peça para guardar num lugar de modo a não ser possível a você encontrá-lo. Noutra oportunidade escreva a mesma dissertação, mas depois de ingerir cinco ou seis doses de uísque. No dia seguinte compare os dois textos. A diferença será tão absurda que você, no mínimo, rirá de si mesmo. Não obstante, tanto quando você estava escrevendo a primeira versão quanto a segunda, estava se considerando a mais coerente e racional das pessoas. Certamente se sentiu muito mais seguro disto enquanto estava escrevendo sob o efeito do álcool. Obviamente é uma lógica exclusivamente sua mas não deixa de ser a "lógica de um bêbado"?

Noélia foi minha amiga de infância e se casou com Odilon. Ela tinha vinte e dois anos e ele, vinte e oito. Tiveram dois filhos. Ela só ouvira falar remotamente na palavra alcoolismo mas nunca se preocupou com isto. Achava que era um problema menor e que só aconteceria às outras pessoas. No princípio tudo eram flores. Ambos bebiam socialmente em festas de aniversário, finais de ano, carnavais, festinhas em família. Mas, depois de um certo tempo, o companheiro passou a beber compulsivamente e a vida do casal se tornou um inferno. O vício comprometeu o bem estar de toda a família. Ciúme doentio, impedir a parceira de sair de casa, mau desempenho sexual eram a tônica. O fenômeno foi se agravando de tal maneira que Odilon teve de ser internado. Mas na "lógica" dele aquilo era pura chantagem; quem sabe ela teria agido assim a fim de traí-lo com mais segurança. O seu raciocínio - graças aos neurônios comprometidos pela bebida - era aparentemente perfeito. Sua mulher, esta, sim seria a culpada de tudo. Muita gente vê os Odilons como pessoas ruins e aí é onde está o maior problema. A uma pessoa má ninguém ama. Mas Noélia idolatrava Odilon. Só que a lógica dela era a do amor e a dele era a do álcool. Conquanto esta última só para ele existisse, nem por isto deixava de ser lógica. Somente para ele o seu comportamento seria racional e coerente mas ele estava absolutamente convencido que aquilo era natural. Com relação a isto, propala-se uma frase famosa atribuída ao falecido ator Humphrey Bogart: "A humanidade se encontra sempre com duas ou três doses de uísque a menos". Este é, no meu modo de entender, a maior dificuldade para se curar - ou pelo menos controlar - um alcoólatra, uma vez que lógicas opostas geram conflitos terríveis. E conflitos geram ansiedade e esta gera neuroses. Então, a menos que a lógica alcoólica de Odilon fosse desfeita através de sua conscientização de que ele estaria muito doente, a vida em comum - não apenas com sua família - mas também com qualquer outra pessoa, seria literalmente inviável.

"Eu sou um bêbado. Para mim não existe possibilidade alguma de recuperação. Já fiz tudo o que estava ao meu alcance. Simplesmente não compreendo como seria possível viver sem o álcool. Para mim é como se a vida sem ele fora impossível. A sobriedade é um estado intolerável; diria mesmo, patológico. É incompreensível como as pessoas sóbrias toleram a dor de ser. Como não suporto mais esta minha vida de bebedeiras, nem muito menos a outra opção, que para mim não faz sentido algum, decidi me matar, pois não tenho razão nenhuma para viver. Na cultura ocidental, o assunto "morte" sempre foi tratado com o mesmo tabu com que é a sexualidade. As pessoas evitam discuti-lo na presença das crianças e só o abordam quando é inevitável. Ora, a morte é a última e a mais previsível conseqüência da vida. Contudo, é irônico e curioso o motivo pelo qual infunde tanto pavor ao ponto de se tornar doentio. As pessoas só temem a morte pelo mesmo motivo que suportam a dor de viver: a perspectiva de novas realizações, novos ideais, novas conquistas; numa palavra, a esperança. Não sinto este medo simplesmente porque não me restou nenhuma esperança. Simplesmente desdenho os calafrios de terror ao pensar na aniquilação total. Nada, para mim, poderá ser pior do que viver. Seja bêbado, seja sóbrio. Se me citassem uma única razão para continuar vivendo eu desistiria de me matar. Todavia, exceto por uma ilusão infantil que apregoa uma 'vida melhor' depois desta aqui, não existe o menor sentido em se continuar vivo. A vida, de um modo geral, pode ser considerada um mero acaso inútil, ou então um sistema físico-químico destinado a aumentar o caos energético do universo. Porém, a existência humana é muito mais desprovida de sentido e mais cheia de sofrimento do que a dos outros animais. A consciência dos seres ditos evoluídos, longe de os tornar mais perfeitos, só serve para lhes infundir a consciência da própria finitude. Em outras palavras: o homem é o único animal que sabe que a vida é feita de sofrimentos e que um dia vai morrer. E a este 'castigo' há quem dê o nome de 'evolução'. Toda concepção metafísica é ridícula e destituída de qualquer sentido. Mas a concepção daquilo a que chamam milagre é mais do que isto: pode chegar a ser cruel. O Evangelho dos cristãos fala da ressurreição de Lázaro como se fora algo venturoso. Pelo contrário. Para mim foi o pior castigo que poderia alguém haver experimentado, porque ninguém merece viver e morrer duas vezes. Por mais sinistros que hajam sido os seus crimes."

Este texto foi encontrado no bolso do cadáver de um alcoólatra que acabara de se matar. Se refletíssemos bem sobre ele, será que o seu conteúdo seria assim tão ilógico, incoerente, irracional ou absurdo? Mistérios da vida! Da vida humana, que fique bem claro. Os outros animais não sofrem este tipo de problema. Cada vez sinto mais inveja do meu gatinho persa! Agora uma pergunta cujo acertador receberá o prêmio de um brinde surpresa: quantos conhaques vocês acham que eu ingeri enquanto escrevia isto?

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