A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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A Batida

(Raymundo Silveira)

Uma das cenas mais patéticas e, simultaneamente engraçadas, de se presenciar no "teatro real da vida" é a discussão que costuma se seguir a um acidente de trânsito. Sem vítimas, claro. A afeição que os seres humanos, especialmente os do chamado sexo forte, dispensam aos seus automóveis, chega a atingir as raias do ridículo. Se a razão de existir das empresas capitalistas não fosse o lucro, e a fonte primordial deste não fosse a escassa durabilidade e fragilidade dos seus produtos, estou convencido de que a indústria automobilística há muito tempo já teria inventado o automóvel de isopor, ou seja, à prova de colisões. O reflexo que se segue a uma batida é instintivo. A ocorrência nem ainda foi registrada pela consciência e a reação já se mostra em toda a sua intensidade. É interessante, também, observar a manifestação dos circunstantes, os quais - caso não detenham nenhum interesse junto aos envolvidos, obviamente - parecem sentir uma espécie de prazer doentio:

- Êta, quase batia! (E se riem)

Somente esta frase pronunciada como se fosse uma espécie de grito vitorioso de guerra, já concorre para multiplicar o acirramento de ânimo dos diretamente envolvidos. Trata-se de um contraste tão pronunciado e estranho para quem o observa com neutralidade, que chega a parecer ensaiado e artificial. É a vitória do excluído contra o privilegiado. O triunfo do despojado contra a angústia do possuidor.

- Toma aqui as chaves. Acabei de retirar da revendedora. Aqui tens o meu cartão com o endereço. Dou-te um prazo de 24 horas para me levares outro novinho em folha.

- O quê? O meu também é carro, chefe.

A esta altura dos acontecimentos o envolvimento emocional é absoluto. Ambos falam o que vem a cabeça. Não existe nenhuma chance de funcionar o menor vestígio de razão. O único detalhe a denunciar que naquelas cabeças já houve momentos de sensatez é um tardio, amargo e inútil "se". "Se eu viesse pela rua de costume..." "Se tivesse girado este volante um pouco para a esquerda..." "Se não tivesse saído de casa..." Perpassam pelo pensamento de ambos os contendores as mais variadas condicionais que esta conjunção poderia abranger, exceto: "Se eu tivesse contratado aquela seguradora". E quanto mais discutem, mais se irritam e menos se aproximam de um acordo. Pelo contrário, o ajuntamento de curiosos - cada um deles com aquele semblante de quem acabou de se apaixonar e foi correspondido - só faz acentuar ainda mais a irritação.

- Não aconteceu nada que quatro mil não resolvam!

É aí quando os protagonistas quase se desesperam, pois não puseram o veículo no seguro, exatamente para pôr o valor do prêmio na Poupança, cientes de que "trombadas só acontecem com o carro dos outros; "jamais com o meu que só dirijo 'na linha'. Em absoluta conformidade com as leis do trânsito". E a troca de insultos prossegue. Para o tal observador neutro, tudo é tão ridículo quanto imaginar que aquele bate-boca restituiria a perfeita integridade dos dois automóveis acidentados.

Depois de discutirem durante mais uma hora, cada um sai no seu veículo jurando por Deus como aquilo não ficará daquele jeito. Tudo será resolvido perante o juizado de pequenas causas. "Se necessário apelarei para o Marquinho que é juiz do trabalho e tem bastante influência junto ao judiciário". Só o tempo apagará aquela mágoa; para outros, mais renitentes, apenas um episódio muito mais grave do que aquele - uma doença do coração ou um câncer, por exemplo -, substituirá aquele rancor. Enquanto isto, os outros homens desejam, sonham, se desesperam de cobiça por causa de um monte de ferro e de borracha. E assim - e não como naquele filme - caminha a humanidade.

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