Às vezes sinto o cheiro do passado! Do aroma dos lençóis
limpinhos com que minha mãe me envolvia e que se mesclava com o cheiro
dela mesma. Sinto o cheiro do passado sem que seja preciso existir nada a ele
imanente. Sinto o perfume da minha prima como se ela estivesse aqui agora, embora
já faça quarenta e nove anos que partiu para ir estudar
a geologia do campo santo. O odor da minha prima a irmã
que nunca tive - está tão presente na minha memória olfativa
que ouso dizer que seria capaz de descrevê-lo com palavras. Era o cheiro
de uma menina moça, bonita, alegre, carinhosa. Mas não era um
perfume artificial. Minha prima recendia a bondade e a amor.
Às vezes sinto, bem nitidamente, o cheiro do passado! Sou capaz de
identificar através dele, todos os momentos marcantes da minha infância.
Sinto o cheiro dos Natais; dos folguedos juninos, dos aluás, dos fogos
de artifício que meu pai comprava e soltávamos, da
nossa calçada, diante das fogueiras; do mês de Maio; da cozinha
da nossa casa; dos currais de gado; do leite mungido e bebido numa caneca de
alumínio, ainda com escuro. Posso identificar pelo olfato, a atmosfera
do Inverno e do Verão da minha aldeia. Embora lá existissem apenas
estas duas estações, sinto também o aroma da Primavera,
porque o conheço muito bem, graças às minhas andanças
pelo mundo, e tenho absoluta certeza de que já o havia sentido, quando
criança.
Às vezes sinto o cheiro do passado! Do odor de terra molhada pelas
chuvas; dos marmeleiros; dos ninhos de passarinhos; dos mata-pastos e das babugens
onde brincávamos de esconde-esconde, sem nunca imaginar que um dia ainda
teria de me esconder de verdade, como acontece agora. Hoje me escondo, sem brincar,
o tempo inteiro, da dor, da violência, das conseqüências dos
danos que nós mesmos causamos à natureza, da competição
selvagem e desumana, da ganância, dos vendedores e dos compradores de
vaidades e de ódios, dos vícios, das doenças, do egoísmo,
das injustiças, das angústias existenciais, do medo.
Às vezes sinto, sem querer, o cheiro do passado! Dos incensos das novenas;
das rosquinhas, dos esquecidos, dos suspiros pulverulentos, das
queijadas, dos puxa-puxas e das cocadas que comíamos depois. Sinto o
cheiro da alfazema a queimar no quarto da minha mãe, quando nascia
natimorto - cada um dos meus irmãos.
Sinto, porém, com muito mais intensidade, o cheiro da inocência,
da paz, da serenidade, do sono, das madrugadas, dos sonhos, do amanhã,
do anoitecer e do amanhecer, do luar, dos céus estrelados, dos banhos
na chuva e no riacho, da proteção dos meus pais, da ilusão,
da esperança, da felicidade postiça. Sinto também o perfume
agridoce da saudade, pois aqueles aromas foram tudo o que restou do meu pretérito.