A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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INCIDENTE EM ANDARES

(Raymundo Silveira)

Certos aspectos do comportamento humano são, no mínimo, curiosos. A inclinação, mais do que inclinação, a compulsão que nos leva a imitar, seguir, reproduzir os atos das demais pessoas é um impulso tão instintivo quanto aqueles outros dos quais os psicanalistas vivem a nos lembrar. Certo dia, devido à falta de algo melhor para fazer, fiz a seguinte experiência. Fui ao centro da cidade, parei diante de um edifício de doze andares e me pus a olhar para cima, simulando um interesse de astrônomo amador sem telescópio. Imediatamente, alguns passantes pararam e se puseram a olhar também. Afastei-me um pouco para observar melhor. Observar melhor os passantes, entenda-se, não o que eles estavam observando, que não se tratava de nada especial. Dentro de pouco mais de meia hora a quantidade de gente já era tamanha a ponto de interromper o tráfego de veículos. O que me chamou mais atenção foi que os passageiros, em vez de se irritarem, pareciam ainda mais curiosos do que os pedestres. Os motoristas, exceto uns dois ou três mais nervosos – ou com algo muito urgente por fazer e que buzinavam feito loucos -, não davam a mínima para o enorme engarrafamento que ia se formando.

Nestas ocasiões sempre aparecem os gaiatos. A certa altura dos acontecimentos (melhor seria dizer dos não acontecimentos, porque, a bem da verdade, não estava a acontecer absolutamente nada) um deles falou em voz alta: "parece que tudo começou no décimo andar, só quero ver como irão se sair desta". Isto foi o bastante para aguçar ainda mais a curiosidade dos demais circunstantes, provocar-lhes algum alvoroço e concorrer a fim de que se ajuntassem mais pessoas. Depois que se passaram cerca de noventa minutos desde quando tomei a iniciativa de parar e olhar para cima, a rua, nas imediações do edifício, estava completamente intransitável assim para veículos quanto para pedestres. Escutei várias pessoas a indagarem umas às outras: "O que está acontecendo?" "Não sei, também acabei de chegar". "Isto é falta de polícia!", opinava outro. "Que nada! É mais uma conseqüência de mais de vinte anos de ditadura e de governo inoperante, isto sim". "Como pode acontecer uma coisa destas numa das maiores cidades do Brasil, em pleno século XXI?" "Se fosse noutro lugar já se teria tomado alguma providência". "De Gaulle era quem estava certo, isto não é um país sério". Não sabiam do que falavam, mas não se continham: deviam falar o que lhes viesse à cabeça. Desnecessário dizer que tudo isto só fazia incrementar a expectativa das demais testemunhas. Não me perguntem o que testemunhavam, pois ficaria quase impossível de responder. Digamos, testemunhas do nada. Ou da falta do que fazer.

Os vendedores ambulantes pululavam: "Olha o cachorro quente!" "Isto ainda vai demorar, vai uma cervejinha gelada?" "Olha o sorvete, tem de morango, sapoti, graviola e maracujá". "Ei amigo, o que é maracujá?" "Não venha me dizer que não conhece maracujá; você é do Sul? Se não conhece maracujá não pode ser daqui; nunca comeste maracujá?" "Mará, não!" E desatou a rir. Depois de duas horas chegaram alguns policiais e formaram dois cordões de isolamento: um separando a turba da entrada do prédio e outro da pista de rolamento de veículos. Com isto a multidão se comprimia cada vez mais. Foi então que percebi indícios de violência e me preparei para deixar o local. "Não empurra, porra!" "Arre égua, quem me empurrou foste tu!" Se não fosse a presença dos guardas ignoro como aquilo iria terminar, pois os ânimos estavam muito exaltados. Depois disto fui saindo discretamente. Mas a multidão só fazia aumentar.

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