Toda espécie de vaidade é, por si própria, ridícula.
Contudo, como quase ninguém costuma lograr esquivar-se dos seus ilusórios
apelos, resta saber administrá-la, pois não raras vezes ela se
transmuda em mórbido sintoma obsessivo. Nesta condição,
além de ridícula a vaidade pode ser também perigosa. É
quando ela passa a preponderar sobre outros eventuais desvios do caráter
como a hipocrisia, a avareza, a tibieza e outros mais. Desastres aí estão
quase todos os dias para corroborar isto. Quem não é portador
de memória atrófica deve lembrar os famigerados episódios
protagonizados por "professores-doutores", pretensos administradores,
pseudocientistas e até "pré-moldados" presidentes. Na
historieta a seguir, desenrolada ao longo de uma das minhas viagens e da qual
fui involuntário participante, a vaidade, felizmente, foi apenas motivadora
de uma sucessão de situações cômicas e ridículas.
Antes, gostaria de deixar evidente que não considero vaidade os cuidados
habituais com a aparência física, mas tão somente aquilo
que representa uma necessidade compulsiva de auto-afirmação. As
águas do Canal da Mancha estavam encapeladas como sempre, e era a minha
sexta travessia, aliás, a duodécima, se forem computados ida e
retorno. Em Londres havia travado relações superficiais com um
paulistano de nascimento, mas europeu de ascendência. Um espécime
de mazombo politicamente quase correto. Dizia-se alto executivo de importante
empresa multinacional. Ao saber-me nordestino passou a dispensar-me o mesmo
tratamento condescendente com que a maioria das pessoas tem por hábito
tratar os deficientes físicos. "Se precisar de alguma coisa é
só me avisar". "Não gostaria de ir ao 'duty free shop'?
Sabia que lá só falam inglês ou francês?". "Conserve
sempre dinheiro e passaporte ao alcance da vista" E por aí afora.
A princípio, quis mostrar logo o "fubá" àquele
gentil compatriota que insistia em me "oferecer o milho", mas preferi
deixar "correr frouxo" como se usa dizer por aqui, só para
ver até onde iria tamanha patacoada. Ao desembarcarmos em Dunquerque
meu cicerone intérprete decidiu que eu merecia uma aula de história
contemporânea e passou a discorrer sobre o Dia D como se aquele evento
histórico ali houvesse sucedido. Confundiu a célebre "Retirada"
ocorrida no princípio da Guerra, com o "Seis de Junho de 1944",
iniciando então um falatório sobre as praias táticas de
Sword, Juno, Utah, Omaha cuja epopéia conheço desde criança
e cujas ações se desenvolveram bem mais a oeste dali de onde estávamos,
ou seja, na Normandia. E eu engolindo aquilo tudo com um misto de piedade e
riso contido. A Grand Place, em Bruxelas - visitada por mim em meia dúzia
de ocasiões anteriores - foi palco, naquela noite, de cenas dignas do
mais reles teatro mambembe como jamais presenciara em meu sertão caipira.
A partir de Hamburgo quase não me deixava mais pronunciar uma única
palavra.
Além de monopolizar os diálogos, tornou-se foco de todas as atenções
com demonstrações bizarras de exibicionismo pedante. Entre Copenhague
e Estocolmo - quando contemplávamos as verdes colinas da Scania - entendeu
de criticar o sotaque alemão dos nativos da Dinamarca e da Suécia,
segundo ele ininteligível, aos nativos da Germânia. Enquanto isto,
seguíamos sempre para o norte, passando por Jonkopling, numa região
saturada de magníficas paisagens lacustres. No hotel, chegou a bater
à porta de vários companheiros de excursão. "Sintam-se
à vontade: se necessitarem de qualquer coisa é só me avisar".
O sexto dia da nossa jornada foi pelo interior da Suécia. Saímos
da capital rumo ao oeste, passando pelas povoações de Eskilstuna
e Karlstad. Contornamos o lago Vannern e cruzamos os campos da província
de Varmland até alcançarmos a fronteira com a Noruega de onde
prosseguimos para o povoado típico de Kongsvinger onde passamos a noite
ao estilo dos autóctones. Mas o hebreu (não esqueci, preferi não
dizer no início para não ser rotulado de anti-semita) não
se mancava: "Olha, não está faltando toalha ou sabonete no
banheiro de vocês? Por favor, verifiquem e me avisem para, se for o caso,
EU reclamar". Na manhã seguinte partimos em direção
a Laerdal. Entre este itinerário e aquele que percorri ao viajar pelos
Alpes entre a áustria e a Suíça, fico em dúvida
para declarar aqui qual seria o mais belo já avistado algum dia por "estes
olhos que a terra há de comer". São dezenas de bosques, lagos,
cascatas e montanhas, quase todas recobertas pela neve extemporânea do
verão norueguês. O corolário desta paisagem de sonhos situa-se
em Laerdal e é representado pelo magnífico "Sognefiordo",
o qual deixa refletir em suas límpidas águas azuis, as montanhas
circunjacentes. O dia seguinte foi dedicado a uma das viagens mais fantásticas
que um ser humano ousaria imaginar fazer algum dia, ou seja, um cruzeiro pelos
fiordes. Estes são autênticos caminhos de sonhos percorridos pelas
águas do mar - e por nós também, sobre elas - montanha
adentro. Durante o trajeto nos maravilhamos com sua beleza estonteante, com
suas águas profundas cuja coloração vai variando do azul
anil ao esverdeado, e com as montanhas a pique, sempre cobertas pela neve. Depois
deste inesquecível cruzeiro de encanto e de magia chegamos ao atraente
povoado de Voss de onde prosseguimos até o "Fiorde Hardanger"
e, de lá, à aldeia típica de Oystese. As maravilhas avistadas
eram tão grandiosas a ponto de haver-me esquecido do meu cicerone intérprete,
ou quem sabe, foi ele que também emudeceu diante de tamanha beleza. Os
próximos dias de nossa viagem passamos entre a cidade portuária
de Bergen e a capital Oslo sobre as quais já me reportei aqui quando
escrevi o relato intitulado "Não Morra Sem Ver a Terra dos Vikings".
Comentei também, ligeiramente, o cruzeiro marítimo noturno realizado
a bordo de um luxuoso transatlântico da Viking Line através do
Mar Báltico, entre as cidades de Oslo-Copenhague-Hamburgo. Foi aí
onde o candidato a Guia de Viagens "deu com os burros n'água",
como é de uso se dizer aqui na minha terra. Em virtude de não
haver camarotes individuais disponíveis, puseram-nos juntos. Ele saíra
para o convés e só retornou após a meia noite quando me
deparou em animado "papo" - em inglês - com uma dinamarquesa,
nossa vizinha na embarcação. "Então você fala
inglês?", indagou redundantemente. Preferi imitar o meu parente e
conterrâneo Didi Mocó: "Às vezes dou minhas cacetadas!"