A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Cenas de Narcisismo Explícito

(Raymundo Silveira)

Toda espécie de vaidade é, por si própria, ridícula. Contudo, como quase ninguém costuma lograr esquivar-se dos seus ilusórios apelos, resta saber administrá-la, pois não raras vezes ela se transmuda em mórbido sintoma obsessivo. Nesta condição, além de ridícula a vaidade pode ser também perigosa. É quando ela passa a preponderar sobre outros eventuais desvios do caráter como a hipocrisia, a avareza, a tibieza e outros mais. Desastres aí estão quase todos os dias para corroborar isto. Quem não é portador de memória atrófica deve lembrar os famigerados episódios protagonizados por "professores-doutores", pretensos administradores, pseudocientistas e até "pré-moldados" presidentes. Na historieta a seguir, desenrolada ao longo de uma das minhas viagens e da qual fui involuntário participante, a vaidade, felizmente, foi apenas motivadora de uma sucessão de situações cômicas e ridículas. Antes, gostaria de deixar evidente que não considero vaidade os cuidados habituais com a aparência física, mas tão somente aquilo que representa uma necessidade compulsiva de auto-afirmação. As águas do Canal da Mancha estavam encapeladas como sempre, e era a minha sexta travessia, aliás, a duodécima, se forem computados ida e retorno. Em Londres havia travado relações superficiais com um paulistano de nascimento, mas europeu de ascendência. Um espécime de mazombo politicamente quase correto. Dizia-se alto executivo de importante empresa multinacional. Ao saber-me nordestino passou a dispensar-me o mesmo tratamento condescendente com que a maioria das pessoas tem por hábito tratar os deficientes físicos. "Se precisar de alguma coisa é só me avisar". "Não gostaria de ir ao 'duty free shop'? Sabia que lá só falam inglês ou francês?". "Conserve sempre dinheiro e passaporte ao alcance da vista" E por aí afora. A princípio, quis mostrar logo o "fubá" àquele gentil compatriota que insistia em me "oferecer o milho", mas preferi deixar "correr frouxo" como se usa dizer por aqui, só para ver até onde iria tamanha patacoada. Ao desembarcarmos em Dunquerque meu cicerone intérprete decidiu que eu merecia uma aula de história contemporânea e passou a discorrer sobre o Dia D como se aquele evento histórico ali houvesse sucedido. Confundiu a célebre "Retirada" ocorrida no princípio da Guerra, com o "Seis de Junho de 1944", iniciando então um falatório sobre as praias táticas de Sword, Juno, Utah, Omaha cuja epopéia conheço desde criança e cujas ações se desenvolveram bem mais a oeste dali de onde estávamos, ou seja, na Normandia. E eu engolindo aquilo tudo com um misto de piedade e riso contido. A Grand Place, em Bruxelas - visitada por mim em meia dúzia de ocasiões anteriores - foi palco, naquela noite, de cenas dignas do mais reles teatro mambembe como jamais presenciara em meu sertão caipira. A partir de Hamburgo quase não me deixava mais pronunciar uma única palavra.

Além de monopolizar os diálogos, tornou-se foco de todas as atenções com demonstrações bizarras de exibicionismo pedante. Entre Copenhague e Estocolmo - quando contemplávamos as verdes colinas da Scania - entendeu de criticar o sotaque alemão dos nativos da Dinamarca e da Suécia, segundo ele ininteligível, aos nativos da Germânia. Enquanto isto, seguíamos sempre para o norte, passando por Jonkopling, numa região saturada de magníficas paisagens lacustres. No hotel, chegou a bater à porta de vários companheiros de excursão. "Sintam-se à vontade: se necessitarem de qualquer coisa é só me avisar". O sexto dia da nossa jornada foi pelo interior da Suécia. Saímos da capital rumo ao oeste, passando pelas povoações de Eskilstuna e Karlstad. Contornamos o lago Vannern e cruzamos os campos da província de Varmland até alcançarmos a fronteira com a Noruega de onde prosseguimos para o povoado típico de Kongsvinger onde passamos a noite ao estilo dos autóctones. Mas o hebreu (não esqueci, preferi não dizer no início para não ser rotulado de anti-semita) não se mancava: "Olha, não está faltando toalha ou sabonete no banheiro de vocês? Por favor, verifiquem e me avisem para, se for o caso, EU reclamar". Na manhã seguinte partimos em direção a Laerdal. Entre este itinerário e aquele que percorri ao viajar pelos Alpes entre a áustria e a Suíça, fico em dúvida para declarar aqui qual seria o mais belo já avistado algum dia por "estes olhos que a terra há de comer". São dezenas de bosques, lagos, cascatas e montanhas, quase todas recobertas pela neve extemporânea do verão norueguês. O corolário desta paisagem de sonhos situa-se em Laerdal e é representado pelo magnífico "Sognefiordo", o qual deixa refletir em suas límpidas águas azuis, as montanhas circunjacentes. O dia seguinte foi dedicado a uma das viagens mais fantásticas que um ser humano ousaria imaginar fazer algum dia, ou seja, um cruzeiro pelos fiordes. Estes são autênticos caminhos de sonhos percorridos pelas águas do mar - e por nós também, sobre elas - montanha adentro. Durante o trajeto nos maravilhamos com sua beleza estonteante, com suas águas profundas cuja coloração vai variando do azul anil ao esverdeado, e com as montanhas a pique, sempre cobertas pela neve. Depois deste inesquecível cruzeiro de encanto e de magia chegamos ao atraente povoado de Voss de onde prosseguimos até o "Fiorde Hardanger" e, de lá, à aldeia típica de Oystese. As maravilhas avistadas eram tão grandiosas a ponto de haver-me esquecido do meu cicerone intérprete, ou quem sabe, foi ele que também emudeceu diante de tamanha beleza. Os próximos dias de nossa viagem passamos entre a cidade portuária de Bergen e a capital Oslo sobre as quais já me reportei aqui quando escrevi o relato intitulado "Não Morra Sem Ver a Terra dos Vikings". Comentei também, ligeiramente, o cruzeiro marítimo noturno realizado a bordo de um luxuoso transatlântico da Viking Line através do Mar Báltico, entre as cidades de Oslo-Copenhague-Hamburgo. Foi aí onde o candidato a Guia de Viagens "deu com os burros n'água", como é de uso se dizer aqui na minha terra. Em virtude de não haver camarotes individuais disponíveis, puseram-nos juntos. Ele saíra para o convés e só retornou após a meia noite quando me deparou em animado "papo" - em inglês - com uma dinamarquesa, nossa vizinha na embarcação. "Então você fala inglês?", indagou redundantemente. Preferi imitar o meu parente e conterrâneo Didi Mocó: "Às vezes dou minhas cacetadas!"

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