A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

SALADA DE GENTE

(Raymundo Silveira)

Era irmã de uma namoradinha de adolescência. Procurou-me quando já fazia mais de três meses que não menstruava. Depois disto já fiz os partos das filhas dela e de uma filha da filha. Parece que acabo de entregar a minha idade! "G, tu tens certeza de que só faz três meses e dez dias que menstruaste?" "Tenho, sim, por quê?" "Por nada!" Por nada não, por tudo. É que não queria assombrá-la. Mas o tamanho do útero estava tão grande que sugeria sete meses de gravidez. Se fosse hoje tudo estaria resolvido dentro de alguns minutos, mas em 1974 era quase a mesma coisa que tentar adivinhar os resultados de todos os próximos treze jogos da loteria esportiva. Naquele ano até para ouvir o coração do menino tinha de ser com um funilzinho de plástico ou de madeira, do qual ninguém pode falar mal porque ele cumpriu (e ainda cumpre) seu fabuloso papel durante mais de um século graças à inventividade de Pinard; não a da "Cinderela negra / Que ao Príncipe encantou", mas a do genial médico francês Adolphe Pinard nascido em Méry-sur-Seine em 1844. Por isto é que nunca canso de me estarrecer quando passo a comparar o que vivi durante os meus primeiros anos de formado com aquilo que vejo agora. Obviamente há colegas que exageram e pretendem que a máquina faça tudo; inclusive pensar por eles mesmos. Mas, no tempo daquela gravidez de G, nem que eu não quisesse teria de pensar assim mesmo. E quanto mais eu pensava, mais a minha adivinhação/raciocínio restringia o número de possibilidades do que aquilo poderia vir a ser: mais de um menino? excesso de água? Mola? (até hoje ainda não sei por que cargas d’água dão o nome de "mola" àquilo que é, de fato, um tumor de cargas d’água na placenta); feto gigante? Pareceria ficção científica se alguém me dissesse que dentro de mais uns vinte anos aquelas minhas indagações fizessem parte de uma questão tão obsoleta quanto era, naquela época, o risco de uma parturiente vir a falecer devido ao grande tamanho da cabeça de um feto. "Por nada, G, mas tu tens de ir a Fortaleza!" "Estás a brincar comigo? Como não é nada e eu tenho de viajar para tão longe?" "É, não é nada mas tens de ir mesmo." E para quê, Deus meu? Para mandar ouvir através de um aparelhinho – que toda cachimbeira hoje em dia possui um guardado na camarinha - que só fazia aumentar o volume das batidas do coração da criança a fim de se tentar encontrar através de um adivinhômetro mais de uma fonte sonora e, por extensão, o número de conceptos que existiria naquela barriga. "Já voltaste? Como foi rápido!" "Pois é, voltei. O teu bilhete foi um verdadeiro ‘abre-te sésamo’; fui atendida logo no oitavo dia da marcação da consulta. Como viajei na carona do vereador Edilberto, gastei apenas um dia para ir e outro para voltar. Portanto, graças ao teu prestígio e ao meu voto, resolvi tudo em apenas dez dias." "Caro Doutor. Meus colegas professores e eu examinamos durante mais de duas horas a sua paciente G, utilizando inclusive o sonar Döppler de última geração, e constatamos que ela é portadora de gravidez dupla, pois conseguimos escutar duas fontes sonoras". E ainda fez um comentário jocoso: "Se se tratar de fetos do sexo masculino, sugiro aos pais que os batizem de Cosme e Damião". Pois sim! Aqueles "dois meninos" pareciam se encontrar mesmo num ambiente muito mais apertado do que sardinha em lata, pois a gravidez ainda não completara oito meses e eles entenderam de dar o fora. "Doutor, venha fazer um parto!" Chovia torrencialmente e, para variar, era alta madrugada. As imediações do hospital estavam tomadas por águas correntes que me chegavam à altura do umbigo. Estava tão molhado que tive de tirar os sapatos e trocar de roupas logo na recepção. Quando entrei na sala de partos já encontrei uma bunda apontando para mim. Fiquei só olhando e esperando. Quando além de bunda, barriga e peito também já chegavam a este vale de lágrimas, amparei tudo e fiquei sustentando até os ombros também baterem à porta pedindo passagem. Ajudei a soltar o primeiro e depois o segundo. Tomei as pernas ainda estendidas sobre a barriga e enverguei suavemente o conjunto no sentido do plano horizontal do abdome da mãe. A cabeça saiu com facilidade Era macho. "Pronto G, chegou o Cosme". E passei a esperar pelo Damião. E esperei durante meia hora. Como não dava o ar da graça e o caminho por onde passou o primeiro já ameaçava se desfazer, tive de intervir. Extraí o Damião pelos pés, executando todas as manobras tentando imitar o que a natureza havia feito ao expulsar o Cosme. Ambos "berravam" como se quisessem me desmentir quanto à minha suposição de que estivessem loucos para deixar aquele aconchego. Mas o útero de G continuava quase tão grande quanto estava no dia em que a tinha examinado pela última vez. Explorei com a mesma mão que aparou o Damião e trouxe o Cosme. Havia outro pé. E como até aquele noite nunca havia visto Saci, depreendi que onde há um pé deveria haver outro. Agi da mesma maneira e extraí o terceiro. Minha falta de criatividade não me deixou improvisar um nome para ele. Mas três ainda eram poucos. Havia mais pés, pernas, coxas, bundas, peitos e cabeças, numa salada humana tão sortida que, se se tratasse de aves, seriam de fazer inveja a qualquer quituteira em véspera de noite de Natal. Para ser sucinto, foram cinco "Cosmes e Damiões" que saíram da barriga de G naquela madrugada.

Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente