A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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LEMBRANçAS DE MEU PAI

(Dorcila Garcia)

Meu pai foi um homem controverso, admirável e único. Embora eu não tenha tido por ele o mesmo apego que tive por minha mãe, eu o amava muito. Assim, meio de longe, limitada pela minha timidez, tinha-lhe grande admiração.

Homem de poucas letras, foi um self-made-man da sua época. Deixou a Bahia em tenra idade, com sua mãe e irmãos e veio para o interior de São Paulo trabalhar em fazendas, que era o que sabia fazer. Ousadia, persistência, vontade de trabalhar e uma sagacidade ímpar o transformaram, em pouco tempo, de capataz em fazendeiro. A casa da fazenda era sua paixão, onde passava a maior parte do tempo.

Meu pai era muito mais velho do que minha mãe. Mocinha, ela encantou-se por ele, homem de fala diferente, já bem posto na vida, que sabia preencher as ilusões de uma mulher tão jovem quanto ela, fazendo-lhe agrados com jóias e vestidos de seda, além de saber recitar versos como ninguém.

O que mais me emocionava no meu pai era seu lado intelectual meio rudimentar, pois havia feito só o curso primário.Um homem de tão pouco estudo, recitava "Navio Negreiro", de Castro Alves, conhecia Victor Hugo, de quem declamava a poesia "A Orgulhosa", ensinando-a para minha irmã mais velha. Quando ele se reunia conosco na casa da cidade para esses "saraus", era muito bom. No meu coração de criança, ele só era superado por meu avô, que contava histórias de Espanha e do sobrenatural com muita propriedade.

Conforme o costume, ele era chamado de Coronel Amâncio, porque todos os fazendeiros eram chamados de "coronéis". Só mais tarde, quando ele não estava mais neste mundo, fui conhecer, através da televisão, "Odorico Paraguaçu", na pessoa de Pc}no Gracindo. Era como se eu estivesse vendo meu pai. Eram parecidos fisicamente, no jeito de vestir e de falar. Impressiedava.

Tenho muito orgulho de ter tido um pai do calibre do Coronel Amâncio, que, nos momentos certoy$ safia ser duro, mas bastava que nós, suas filhas, lhe fizéssemos um carinho, para que ele se desmanchasse ee imrados. Fora um homem muito sofrido e toda aquela dureza foi a armadura que encontrou para sobreviver. Na verdade, não importa quem meu pai tenha sido; o que interessa é a lembrança de quem ele foi.

Que, onde quer que você esteja, pai, possa saber que o amamos e até hoje repetimos suas filosofias de vida, constatando que você sempre esteve certo em tudo o que nos ensinou.

Quando se é muito jovem, não se presta muita atenção aos ensinamentos, mas a vida nos mostrou que tudo o que pensávamos ser implicância e insensibilidade tinha um nome bem diferente: sabedoria.

Papai, há muito tempo você descansa em outra dimensão, mas espero que o amor que estas palavras contêm possa atravessar qualquer linha divisória entre esta e a outra vida e que lhe chegue aos ouvidos o que digo agora, do fundo do coração: "Eu amo você, papai. Jamais haverá outro igual!"

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