A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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ROTINA

(Dorcila Garcia)

Depois de tomar o seu café lendo o jornal, sem ao menos me enxergar, ele, já de pé, deu uma mordiscada em um croissant e se encaminhou para a saída. Acompanhei-o até a porta e, como de costume, esperei por um beijo. Ouvi um "até à noite" apressado, enquanto um beijo chocho resvalava em meu rosto. Permaneci à porta, esperando para acenar-lhe. Ele, rapidamente, tirou o carro da garagem e saiu, sem sequer olhar para os lados.

Fechei a porta e caminhei devagar até o quarto. Enxuguei uma lágrima que teimava em cair e retirei, com cuidado, a máscara de esposa feliz. Entreguei-me aos afazeres domésticos, mas só meu corpo estava ali. Minha mente vagueava sem rumo. Enquanto dava um jeito na casa, varria minhas frustrações para debaixo do tapete, para que eu não as visse a toda hora, para que elas não me impedissem de levar adiante aquela convivência insossa, que era a única coisa concreta que me restava. Se é que se poderia dizer que era concreta...

Nesse dia, entretanto, eu senti alguma coisa no ar, como se algo diferente fosse acontecer. Confirmando minha intuição, ele chegou em casa mais cedo, fato que nunca acontecia. Contente, eu disse que iria preparar um jantar especial, com seus pratos preferidos. Para minha surpresa, ele convidou-me para irmos jantar em um restaurante naquela noite. Mal podia esconder minha agitação. Era o meu aniversário e ele havia-se lembrado! Porém, não sei explicar por que, junto com essa felicidade, senti uma certa insegurança...

Com o coração acelerado, vesti-me como num sonho. Pus o meu vestido mais bonito, especialmente para agradá-lo. Quando eu descia as escadas, sentindo-me tão linda quanto uma estrela de cinema, ele, que estava sentado no sofá da sala em frente à TV, olhou-me com um ar desaprovador e perguntou-me se eu não havia exagerado no traje e na maquiagem...Imediatamente, o encanto se quebrou. Por pouco, não disse a ele que não iria mais. Respirei fundo e não respondi nada. Apenas sorri. Um arremedo de sorriso, que exigia de mim uma força descomunal.

No restaurante, jantamos quase mudos, só comentando vez ou outra sobre os pratos servidos. Nem uma atenção especial, nem um botão de rosa, nada. Depois, vendo um grupo de amigos do escritório, chamou-os para nossa mesa. Enquanto todos tomavam seus lugares, ele virou-se pra mim e disse, todo sorrisos: "- Olha só o seu prestígio, com tantos amigos à mesa!" Eu quase desabei. Esbocei um meio-sorriso tentando disfarçar minha decepção perante os convidados. Nem é preciso dizer que a comemoração foi até altas horas, só se falando de trabalho. Eu assistia a tudo, muda, como se não estivesse ali. Foi assim a festa do meu aniversário...

Chegamos em casa e subimos para nosso quarto. Eu estava em frente ao espelho quando ele veio ao meu encontro e me abraçou pelas costas. Sem dizer uma palavra de carinho, começou a beijar-me a nuca, as orelhas, os ombros. Estranhamente, aquilo me incomodou e senti um mal-estar que nunca havia sentido. Fui me sentindo pouco à vontade, desconfortável mesmo, e só com o olhar, demonstrei que não estava propensa a nada, a não ser dormir. Ele olhou-me sem entender nada, provavelmente pensando não entender as mulheres, deu de ombros e foi se deitar...

Fui tomar um banho tentando apagar da mente aquela noite desastrosa, que ele imaginava ter sido perfeita. Demorei uma eternidade, como se nunca mais fosse me sentir eu mesma. Quando voltei para o quarto, ele dormia pesadamente. Sem fazer barulho, eu me deitei ao seu lado, virei-me de costas e fiquei pensando se aquele dia não estaria marcando o começo do fim...

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