A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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INSÔNIA

(Dorcila Garcia)

Dia desses, bateu aquela insônia insistente, quase invencível, refratária aos mais eficazes tranqüilizantes. Chazinhos, leite morno, mel, receitas da vovó e Dona Insônia, placidamente, tomando todas aquelas beberagens como se fossem meros aperitivos. A danadinha escarneceu de tudo e continuou ali, firme e impávida, parecendo disposta a viver comigo eternamente.

Matreira como ela só, veio chegando assim, bem de mansinho, como quem não quer nada. O rádio-relógio exibia sem pudor seu placar noturno. Parecia até provocação. Números vermelhos, fosforescentes, marcavam 23h00, 23h40, meia-noite, 01h11 e outras preciosidades numéricas. Quando o visor mostrava 03h33, minha mente (já pendendo para o sobrenatural) fez logo as contas: "Nossa, esse número é a metade do 666. Será algum sinal do apocalipse?" Fiz depressinha uma prece lembrando dos exorcismos do cinema e esperei imóvel, respiração presa, o sono chegar.

Meus olhos continuaram tão abertos como se o mecanismo de movimento das pálpebras tivesse emperrado. Àquela hora da madrugada, a TV já estava à mercê dos "poltergeits". Minhas fitas de vídeo só continham fragmentos: retalhos de filmes, programas insossos, reportagens com prazo vencido, tudo misturado, sobreposto, meio insano.

Quando apareceu na tela o pessoal do "Telecurso", aí foi demais! Desisti. Já estava pensando em me levantar e cuidar da vida quando, de repente, me deu um estalo: "E se eu, só de birra, começar a adiantar um pouco aquele conto que anda empoeirado como um brinquedo velho?" Bingo! Caderno, caneta e prancheta na mão, pra escrever na cama,pois o frio andava um tanto sádico naquele ano. Fiz pose de escritora. Olhos perdidos na penumbra do quarto, fiquei esperando surgirem as palavras certas. Mas nada! Nem um artigo definido consegui escrever! Minha inspiração devia a quilômetros de distância, se esbaldando na balada com meu sono fugidio.

Às 6h30, o "grilo" começou a cantar. Explico: meu despertador tem essa voz baixinha, porque não quero dar vazão aos meus instintos selvagens se algo me despertar como uma parada de sete de setembro. Pois não é que, nesse exato momento, eu senti que Dona Insônia estava querendo me abandonar? Atitude imperdoável ! Só de vingança, me pus a escrever esta crônica ao final do amanhecer.

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