A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Vida Interrompida

(Maurilio Tadeu de Campos)

Fernando, rapaz tímido, 23 anos, chegou num dia frio, quando estávamos preparando um novo momento para os nossos trabalhos. A roda já estava formada no salão. Indiquei uma cadeira desocupada. Ele sentou, ressabiado. Os componentes do grupo olharam-no, calados. Era o momento de começar.

Dirigi-me ao grupo que coordenava e, após os cumprimentos de praxe, informei que estava entre nós um novo componente, o Fernando, tão necessitado de carinho e atenção como qualquer um de nós. Em nome do grupo dei as boas vindas ao rapaz.

Nos grupos de recuperação de dependência química e alcoólica, a rotatividade é relativa e, para cada um que chega, os demais têm a necessidade de "apadrinha-lo", como se mais um irmão houvesse regressado, uma "ovelha desgarrada" procurando um local seguro, um abrigo certo.

Fernando foi, aos poucos, ficando mais comunicativo. Trocamos idéias muitas vezes sobre o cotidiano da vida. Ele conhecera uma moça e, embora não fossem casados, tinham um filho, ainda pequeno, que amavam muito. Comentou que estava com problemas financeiros e que, por isso, precisava de apoio para poder levar, pelo menos, uma cesta básica para a família, mensalmente. Naquele núcleo de recuperação a solidariedade era constante. Quem mais precisasse de ajuda, certamente acabava recebendo. Funcionários, voluntários e pacientes estavam sempre unidos para socorrer aos que carecessem de auxílio mais urgente. Todos sabiam que o amparado de agora poderia ajudar no futuro.

Os trabalhos iam transcorrendo bem. No Natal montamos uma árvore de cartolina numa das paredes. Pétalas coloridas, de papel, foram distribuídas para que todos escrevessem nelas os seus nomes e as colocassem na árvore. Fernando veio pedir minha sugestão a respeito do local onde poderia colar a dele. Eu disse que pusesse a sua pétala em um lugar de sua livre escolha, porque faria parte da árvore e seria tão importante como as demais. Ele sorriu e disse: - "Vou colocar a minha no lado esquerdo, o lado do coração".

Logo após o Natal notei que Fernando não comparecia mais às reuniões. Perguntei a várias pessoas, até que fui informado que ele havia voltado às drogas. Fiquei aborrecido mas esperançoso para que ele regressasse logo ao nosso convívio. Afinal, estava progredindo bem e, como ainda era jovem, todos torciam pela sua recuperação.

Um dia recebi a notícia: Fernando fora assassinado. Não se sabia direito por quem ou por qual motivo. A reunião transcorreu aparentemente normal, mas o ambiente ficou triste pela perda de um dos recuperandos. Porém, o trabalho deveria continuar, pois os outros ali estavam, desejosos de amparo e de estímulo para atenuar suas dificuldades. A sensação da perda, porém, ficou difícil de ser superada rapidamente. Restou a lembrança, nas fotos do grupo em num dia de festa onde lá estava Fernando, sorridente, repleto de juventude e cheio de vida.

(publicado no Jornal A Tribuna, de Santos, edição de 28/01/2011, coluna "Tribuna Livre")

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