Fernando, rapaz tímido, 23 anos, chegou num dia frio, quando estávamos
preparando um novo momento para os nossos trabalhos. A roda já estava
formada no salão. Indiquei uma cadeira desocupada. Ele sentou, ressabiado.
Os componentes do grupo olharam-no, calados. Era o momento de começar.
Dirigi-me ao grupo que coordenava e, após os cumprimentos de praxe, informei
que estava entre nós um novo componente, o Fernando, tão necessitado
de carinho e atenção como qualquer um de nós. Em nome do
grupo dei as boas vindas ao rapaz.
Nos grupos de recuperação de dependência química
e alcoólica, a rotatividade é relativa e, para cada um que chega,
os demais têm a necessidade de "apadrinha-lo", como se mais
um irmão houvesse regressado, uma "ovelha desgarrada" procurando
um local seguro, um abrigo certo.
Fernando foi, aos poucos, ficando mais comunicativo. Trocamos idéias
muitas vezes sobre o cotidiano da vida. Ele conhecera uma moça e, embora
não fossem casados, tinham um filho, ainda pequeno, que amavam muito.
Comentou que estava com problemas financeiros e que, por isso, precisava de
apoio para poder levar, pelo menos, uma cesta básica para a família,
mensalmente. Naquele núcleo de recuperação a solidariedade
era constante. Quem mais precisasse de ajuda, certamente acabava recebendo.
Funcionários, voluntários e pacientes estavam sempre unidos para
socorrer aos que carecessem de auxílio mais urgente. Todos sabiam que
o amparado de agora poderia ajudar no futuro.
Os trabalhos iam transcorrendo bem. No Natal montamos uma árvore de cartolina
numa das paredes. Pétalas coloridas, de papel, foram distribuídas
para que todos escrevessem nelas os seus nomes e as colocassem na árvore.
Fernando veio pedir minha sugestão a respeito do local onde poderia colar
a dele. Eu disse que pusesse a sua pétala em um lugar de sua livre escolha,
porque faria parte da árvore e seria tão importante como as demais.
Ele sorriu e disse: - "Vou colocar a minha no lado esquerdo, o lado do
coração".
Logo após o Natal notei que Fernando não comparecia mais às
reuniões. Perguntei a várias pessoas, até que fui informado
que ele havia voltado às drogas. Fiquei aborrecido mas esperançoso
para que ele regressasse logo ao nosso convívio. Afinal, estava progredindo
bem e, como ainda era jovem, todos torciam pela sua recuperação.
Um dia recebi a notícia: Fernando fora assassinado. Não se sabia
direito por quem ou por qual motivo. A reunião transcorreu aparentemente
normal, mas o ambiente ficou triste pela perda de um dos recuperandos. Porém,
o trabalho deveria continuar, pois os outros ali estavam, desejosos de amparo
e de estímulo para atenuar suas dificuldades. A sensação
da perda, porém, ficou difícil de ser superada rapidamente. Restou
a lembrança, nas fotos do grupo em num dia de festa onde lá estava
Fernando, sorridente, repleto de juventude e cheio de vida.
(publicado no Jornal A Tribuna, de Santos, edição de 28/01/2011, coluna "Tribuna Livre")