A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Cidadania Transversal

(Maurilio Tadeu de Campos)

"As coisas que eu sei de mim, são pivetes da cidade,
pedem, insistem e eu, me sinto pouco à vontade...
" (Aldir Blanc)

Sinal Fechado. Um menino franzino, cabelos descoloridos, braços e pernas repletos de cicatrizes, despertou minha atenção. Fiquei observando enquanto ele movimentava uns bastões, tentando dominar aqueles instrumentos, no intuito de mostrar uma arte que aprendera na escola da rua. Aparentava uns doze anos, embora pudesse ter mais. Ele acabou seu pequeno número, aproximou-se e eu dei a ele uma nota de cinco reais. Ele pegou, sorriu e agradeceu, voltando à calçada. Ainda olhei para ele uma última vez antes de seguir, percebendo sua expressão alheia, sem vida, sem motivação para mais nada fazer a não ser permanecer ali, pegando uns trocados a cada parada do trânsito.

Então, imaginei aquele menino numa casa onde o conforto estivesse presente: boas roupas, alimentos, educação, oportunidades para uma sobrevivência menos dolorida. Onde estaria a sua família? A sociedade tem umas diferenças que me incomodam e eu, que também sou parte dela, o que, de fato, estou fazendo para melhorar tudo isso?

Um garoto nessa condição, talvez sem lugar para morar, poderia ser adotado, indo para um lar saudável, pleno em atenções e carinhos. Seria muito tarde para isso? As famílias geralmente relutam em adotar crianças mais velhas. Uma adoção sempre é uma fase nova na vida do adotado e de quem adota; há de acontecer um mútuo aprendizado, pois os seres humanos ainda sentem dificuldades para essa nova coexistência em que há regras que ambos devem obedecer; direitos que ambos devem ter. O bom senso nos diz que devemos aprender (ou reaprender) a proporcionar afeto aos nossos semelhantes para poder receber de volta esse sentimento. O adulto que adota precisará redobrar suas responsabilidades perante um ser que vai depender dele e que com ele necessitará conviver harmoniosamente. Não é como ter um animalzinho de estimação, levar ao veterinário, adquirir as rações adequadas ao peso e à raça, arrumar o seu cantinho, comprar seus próprios apetrechos e as famigeradas roupinhas de ser humano adaptadas aos animais. Quando a decisão for a de adotar uma pessoa, o adotante precisará estar atento para ser capaz de exercitar a tarefa da paternidade com muito esmero, sem se ferir e, principalmente, sem ferir aquele que anseia por uma vida mais digna. Não querendo entrar em detalhes, entendo que as leis que regulamentam as adoções deveriam ser revistas, para que houvesse menos burocracia em certos casos; seria melhor facilitar o ato do que impor algumas exigências desnecessárias e desmotivadoras ao adotante. Tais cobranças acabam por negar um bom lar para quem dele precisa.

Ao depararmos com esses garotos poderíamos sonhar em vê-los num lugar adequado para morar, essencial à prática de bons e proveitosos valores, que despertariam o estímulo a novos e importantes momentos de felicidade. Quem sabe, a partir da adoção, cada pessoa estaria resgatando seus próprios valores, que ficaram perdidos num passado distante, ainda quando todas as famílias eram regidas por saudáveis regras de convivência.

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