A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Mulher é desdobrável?

(Maria José Zanini Tauil)

Ana dormia e eu fiquei olhando aquele rosto suave, marcado com os sinais do tempo, mas ainda belo. Éramos amigas desde os tempos de escola normal. Ela casou com militar, foi morar em Recife e há muitos anos não nos víamos.

Hoje fui visitá-la no hospital. Ela fez uma cirurgia plástica nos seios, teve uma complicação já superada e precisou ficar mais uns dias internada.

Ela acordou e sorriu para mim. Seus olhos verdes não perderam a luminosidade. Conversamos, lembramos dos velhos tempos. De repente, Ana olhou o relógio e se apavorou. Faltavam dez minutos para a chegada do marido. Como não podia movimentar os braços, pediu que a penteasse, fizesse uma levíssima maquiagem e colocasse um delicado perfume atrás de seu pescoço. Segui as ordens de minha amiga, mas estava surpresa. Depois de trinta anos de casada, parecia uma adolescente esperando o namorado, que era o mesmo de tantos anos.

Fiz um comentário a respeito e ela me respondeu: "Ah, amiga! Ainda existem mistérios entre nós! Não há poesia que resista ao outro usando fio dental na tua frente. Nosso corpo tem suas miseriazinhas e para isso, existem portas e chaves.
" Você não quer dizer que..."
"Isso mesmo! Nunca fizemos xixi ou cocô diante do outro.Fizemos esse trato antes de casar e respeitamos".

Achei meio exagerado, mas voltei para casa pensando no assunto. Amar pode ser não dizer tudo, poder jogar com as cartas na mesa, mas escondendo outras. Quantas mulheres, depois que casam só usam roupa nova para o compromisso social, adoram dormir com aquela camisetinha velha e macia.. "A gastar com lingerie para agradar meu marido, que nem me olha, prefiro comprar um sapato novo", diria uma outra amiga minha.

Lembrei de Adélia Prado: "mulher é desdobrável". Viver ao lado de alguém, gostosamente, é redescobri-lo, reinventá-lo, saboreá-lo pela vida inteira... mas sempre com sabor de novidade. Tudo realizado a dois, necessita de planos. Dividir o mesmo espaço no banheiro, no closet, na cama... dividir medos e vontades... mas ter um manancial de coisas pessoais, segredos.

É difícil manter o mistério quando se acorda ao lado da outra pessoa, cabelos desgrenhados, boca suja, vivendo e resolvendo problemas juntos, caminhar ao lado sem pisar no pé do outro.

Temos que cuidar da rosa que plantamos juntos. Guardar um pouco de nós não é desleal nem é egoísmo. É preservação.Minha amiga Ana sabe das coisas!
Quem preserva tem por mais tempo... O que você acha?

  • Publicado em: 17/05/2005
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