A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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PATINHO FEIO

(Maria José Zanini Tauil)

"-Elogie-se! Vamos, elogie-se! Ame-se mais!" Cida estava cansada das mesmas recomendações , todos os dias, da irmã, que vivia devorando livros de auto-ajuda.

Na verdade, ela parecia ter compromisso marcado com a infelicidade. Só amou platonicamente, achava-se feia e nada fazia para melhorar a aparência. Na opinião da psicóloga, era complexo adquirido na infância. A mãe não gostava da sogra, chamava-a de velha horrorosa e Cida era muito parecida com a avó.. Incorporou também o "horrorosa".

Cresceu tímida e introvertida. Na faculdade, era aluna apagada, sem grupo de amigos, evitava qualquer posição de destaque,onde pudesse ser analisada, visualizada por uma platéia. Apresentações individuais de trabalhos eram um desastre.. defendia-se do sofrimento negando a necessidade de amor, tornando-se hermética, fria e, aparentemente, insensível, incapaz de qualquer ligação afetiva.

Antes de sofrer rejeição, ela mesma rejeitava.

Não sabe como nem quando, mesmo sem querer e evitando, viu-se tremendamente apaixonada por um vizinho recém-chegado ao prédio, estudante de engenharia. Algumas vezes, no elevador, notava seu olhar e baixava os olhos, timidamente. Pela primeira vez, desejou libertar-se do padrão que produzia nela atitudes e comportamentos negativos de se relacionar com os outros.

Disposta a mudar, passou a olhar-se mais no espelho. Mesmo se sentindo ridícula, conversava com ele. "Eu me amo...o que posso fazer por minha felicidade?"
Como se ouvisse uma voz vinda do espelho, decidiu-se por novo corte de cabelo, algumas mechas louras, optou por lentes de contato e aposentou os óculos tipo fundo de garrafa. Aos poucos, foi percebendo que não era nada feia, tinha olhos e sorriso bonitos.

Levou muito tempo para entender que precisava amar-se primeiro para depois amar os outros.

Passou a usar roupas mais modernas, aprendeu a maquiar-se. Uma coisa puxava outra, cada vez que se sentia mais admirada e bonita.

Uma tarde, no elevador, encontrou o bonitão, estudante de engenharia, abraçadinho com uma garota. Não baixou os olhos. Encarou-o. Sentiu ligeira agitação no coração, uma certa decepção, mas não doeu muito.

No hall do edifício, olhou-se no espelho, ajeitou os cabelos., ganhou a rua e correspondeu com simpatia aos olhares dos estudantes que aguardavam o ônibus da universidade.

O ônibus parou. Todos abriram uma ala para que Cida subisse primeiro. Já dentro do veículo, observou divertida, que eles se apressavam como se apostassem corrida para ocupar o lugar vago ao seu lado.

Pela primeira vez, sentiu-se poderosa e capaz. Nem melhor nem pior que as outras meninas, apenas pronta para competir com elas.

  • Publicado em: 17/02/2004
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