A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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CRÔNICA NOSTáLGICA

(Maria José Zanini Tauil)

Se daqui a alguns anos, a sanidade não estiver danificada e a esclerose não estiver progressiva, escreverei sobre o nosso passado que começa agora no presente. Meio complicado, não? Não estou mais na primavera da vida e és o meu sol de verão...quero com minha umidade outonal molhar-te e desejar que jamais chegue o inverno em nossas vidas, para que nossos corações permaneçam aquecidos...

É duro ser mulher. Aos vinte, a pele com o frescor das pétalas de rosas, a cabeça cheia de sonhos e...de vento.

Quando se atinge o equilíbrio, a maturidade sexual, a plenitude do discernimento, já se tem quarenta... E como não fugir dos cabelos brancos, do uso de óculos para ler, dos quilinhos extras, do cansaço? Queria ser amada pelo meu conteúdo e sentimentos, no entanto, vejo-me envolvida numa guerra nos salões de cabeleireiros, nas tinturas de cabelos, no uso de cremes, hidratantes, exfoliantes, manicure, pedicure... Um horror mulher de pés maltratados! Cabelos, nem se fala! E a guerra à balança, a consciência pesada ao se empanturrar de doces e dizer: "Na segunda recomeço o regime"...As caminhadas, a hidroginástica. ..Magra como manequim? Não posso! Tenho pernas grossas e rosto redondo! Sem entregar os pontos, submeto-me ao tratamento ortomolecular, à vitamina E e ao fatal hormônio para aliviar os incômodos da menopausa próxima...Renovo o guarda-roupa, quem trabalha tem que fazê-lo. Aluno é muito crítico...Uso saltos altos, que dilaceram-me os pés...

Às vezes, fico desanimada...Dá vontade de jogar tudo para o alto, usar jeans e camisetas largas, abolir de vez o sutiã, usar daquelas sandalinhas que compro para minha mãe...meus pés sorririam de felicidade! Assumir a deficiência visual e com ela, o uso constante dos óculos, deixar o rosto limpo, sem maquiagem do tipo tapa-buracos, usar cabelos em coque como uma avó...Puxa! Tinha até esquecido! Eu sou uma avó!... Ficar em casa, cuidar de netos, aturar rabugice de marido senil, ingratidão de filho, deixar os cabelos embranquecerem naturalmente e cochilar na cadeira de balanço depois do almoço...Aí sim, seria amada como sou, pelo meu conteúdo culinário, meus sentimentos pessimistas, meu tricô ou meu croché.

Já ouvi em algum lugar que as coisas acontecem erradas. Se não me engano, foi o Chico Anísio quem disse que deveríamos nascer bem velhinhos e morrer ao voltar para o útero materno. Acho que ele tem razão. Afinal, é uma curtição limpar o bumbum do bebê...mas quem gosta de limpar o bumbum de um ancião?

Esta nostalgia me invade porque não vi passar vinte anos de minha vida, com depressão e pânico. E o tempo não espera por nós. Aí, lembro daquele poema de Cecília Meireles, AUTO-RETRATO, "Eu nem dei por essa mudança... Em que espelho ficou perdida a minha face?".

Eu me sinto como a Bela Adormecida, que dormiu por tantos anos. De repente, surge o príncipe e a acorda com um beijo. Ela retorna à vida, mas o mundo não é o mesmo. Tudo mudou. Estará ela preparada para viver agora? Não será tarde demais?

  • Publicado em: 25/06/2003
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