A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Mortos Indigentes X Caminhão da Coca - Cola

(Luciana do Rocio Mallon)

Um dos principais problemas da nossa sociedade é que , nos dias atuais , você precisa ser alguém mesmo depois de morto .

Já notou que nos obituários dos jornais , o nome do falecido sempre vem acompanhado da sua última profissão , como se ele ainda estivesse vivo ?

Será que neste mundo ser alguma coisa é mais importante do que sentir algo ?

Dias atrás , uma senhora amiga minha , teve um filho que morreu atropelado . Porém , ela ficou indignada ao ver que na imprensa , na seção de obituário , o nome do seu parente falecido veio acompanhado da palavra indigente . Tal referência causou revolta porque o rapaz era formado em faculdade , mas por causa de problemas com dependência química virou morador de rua . Mesmo assim ele não era um indigente , pois tinha família . Sem falar que classificar um falecido como indigente é uma falta de consideração com o morto e seus familiares .

Por que em vez de colocar isto , o editor não deixou a profissão da pessoa em branco ?

A mãe do rapaz procurou o responsável e ele disse que a colocação da atividade do sujeito , em vida , era obrigatória para a publicação . Tal exigência é um absurdo e isto obriga até que os mortos sejam "alguém" mesmo depois de desencarnados .

Após este episódio , liguei a televisão e assisti ao comercial da Coca - Cola , onde um estudante disse :

- Meu pai dirige um caminhão da Coca - Cola ...

Logo lembrei - me que o texto original de tal propaganda fez sucesso no início dos anos setenta . Então minha mente foi até ao ano de 1996 , numa aula da matéria chamada Linguagem da Propaganda , onde o professor falou :

- Teve um comercial da Coca - Cola inesquecível porque foi baseado numa redação de um estudante carente , que era bolsista de uma escola particular . Tudo aconteceu na época do Dia dos Pais e a professora pediu para que as crianças escrevessem redações sobre as profissões deles . Então apareceram textos sobre : médicos , advogados , dentistas e engenheiros . Apenas o garoto bolsista tinha um pai com uma profissão modesta : caminhoneiro . Porém a redação premiada pela professora foi a deste menino e a frase que mais marcou a mestra foi esta :

- Meu pai dirige um caminhão ...

- Mas não é qualquer caminhão ...

- É um caminhão da Coca - Cola !

O texto desta criança fez tanto sucesso que virou comercial do refrigerante nos anos setenta e voltou a ser regravado agora , em pleno século vinte e um .

Os editores responsáveis pela publicação de óbito dos falecidos , das suas regiões , deveriam agir igual a esta professora . Afinal um ser humano desencarnado não deve ser visto pela profissão que tinha em vida , mas como alguém com sentimentos que não se resume em apenas a um emprego .

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