Aos 4 anos de idade, encontrava dificuldades em encaixar os botões da
camisa em suas respectivas casas. Até mesmo o deslizamento do zíper
em muitas ocasiões causava ferimentos nas pontas dos meus dedos.
Naquela época poucos prédios atingiam 8 ou 12 andares com elevadores.
Eu morava num de 3 andares, sem elevadores. E cada degrau da escada quase da
altura de minhas pernas lembrava uma pequena mureta a ser escalada ou servir
de trampolim para o piso da portaria.
Ao transitar pelas calçadas, preferia caminhar junto às paredes,
entre as latas de lixo, que de alguma forma me serviam como barreiras protetoras
contra aquelas altas pessoas sempre apressadas, parecendo prestes a me atropelar.
Ao levar o garfo à boca, tinha a impressão de que o mesmo poderia
atravessar meu pescoço. O prato de sopa com 330 ml de líquido
mais parecia um pequeno balde no qual me afogaria se absorvesse todo aquele
conteúdo.
A escova dental me lembrava um enorme espanador, que se fosse esfregada com
muito vigor, poderia me arremessar para dentro do vaso sanitário, que
a esta altura, parecia um tanque de lavar roupas!
O tempo passou, cresci, fui perdendo alguns medos pela convivência regular
com o ambiente. Mas fui adquirindo outros piores, incutidos em minha mente pelas
afirmações de dezenas de pessoas carregadas de preconceitos
gratuitos ou dispostas a formar minha personalidade segundo um padrão
duvidoso de avaliação do ser humano. A vizinha da casa à
esquerda dizia que "manga com leite causava úlcera". Só
perdi este temor aos 18 anos, quando coloquei esta fruta acidentalmente no liquidificador
pensando ser um pêssego. Lamentei o tempo que deixei de saborear esta
gostosa vitamina. O vizinho do lado direito dizia que "andar era ótimo
para saúde". Por isto me mandou várias vezes ao mercado da
esquina me recompensando uma vez por semana com sacos de jujubas. Bem mais leves
do que aqueles de 3 ou 4 kg que eu trazia para ele. Se andar era bom, por que
ele me incentivava a não correr atrás da bola na praça
em frente? Pior era o médico que nos orientava "caminhar na areia"
para enriquecer o pulmão. Só não explicava o cigarro entre
seus dedos. O dono da padaria me alertava para não brincar com o "Pedroca",
pois seu tio estava preso numa cadeia no Nordeste. Será que de lá
ele enviava maus fluidos ao meu colega de traquinagens e alguma névoa
maligna poderia envolver minha cabeça? Por que na hora de dormir me cantavam
o "Boi da cara preta" no lugar de uma sinfonia ou do hino da pátria?
Agora, decorrido mais de 50 anos desta época de sonhos e descompromissos,
tardiamente percebi quantas vezes iludimos crianças com fantasias danosas
em nome da moral, dos bons costumes e da higiene. Uma maneira talvez acomodada
de manter o guri elétrico quieto sem articular idéias construtivas,
tais como empilhar 3 ou 4 garrafas de vidro perto da panela de feijão.
Por que os adultos preferem inventar um fato assustador para uma ação
infantil ao invés de perder 10 minutos explicando as conseqüências
de tal ato? Deve ser a pressa de sair para encontrar famílias amigas
que marcam reuniões em festas noturnas enquanto seus herdeiros ficam
em casa "acompanhados" de vídeos explosivos ou filmes
de terror que começam às 21:30 hs e ajudam na formação
de jovens desajustados capazes de atirar nos próprios avós em
busca de recursos para comprar drogas. No lugar da simples entrega da mesada
(cujos gastos não fiscalizamos), tem mais valor a doação
de 30 minutos por dia (sou feliz por que fiz isto) ao lado da sua criança
amada para orientá-la para sua vida futura na coletividade. Coloca-la
a par de questões relativas à limpeza da praça, por exemplo.
Bem como explicar porque não devemos ter pombos em gaiolas. Estas mensagens
podem ser passadas enquanto se brinca no meio da sala, após o jantar.
Deixa-las acompanhar novelas e debates dos políticos enganadores certamente
causarão influências negativas em suas personalidades durante a
fase de confecção e lapidação de caráter.
Portanto crianças, ainda que vocês não compreendam perfeitamente
as sutilezas e indiretas deste texto, tenham pena de nós adultos, que
repentinamente entre 25 e 40 anos, fechamos nossos corações para
os atos singelos que vocês praticam com tanta naturalidade e os empurramos
por trilhas nebulosas da vida. Tenham certeza de que muitos de nós invejamos
suas atitudes e alguns até pretendem que vocês se tornem "responsáveis"
para deixarem rapidamente para trás este período de pureza e alegria
que sedimenta o caráter de cada ser humano. Tenham compaixão de
nossos pobres espíritos flagelados e viciados na materialidade, que não
percebem como vocês conseguem felicidade tendo um pequeno espaço,
dois gravetos, duas tampas de garrafas de plástico, um pedaço
de barbante, dois lápis coloridos, uma folha de jornal e um colega para
ajudá-lo a materializar sonhos. Mostrem-nos como se idealiza e se pratica
um mundo de amizade sem interesses, sem planos maldosos para causar mal ao companheiro
que partilha do seu projeto nem tirar vantagem sobre terceiros de forma escusa.
Crianças do mundo: salvem este planeta enquanto é tempo. Vocês
não precisam gritar, marchar em bandos nem portar armas para isto. Apenas
sentem-se, ergam seus braços para nos receber com perdão e abram
bem seus olhos, que se tiverem lágrimas, refletirão com mais beleza
a pureza que vocês armazenam no coração!
Ajudem-nos a eliminar o egoísmo que nos arrasta para o abismo da insensibilidade
regada apenas por interesses avarentos. Forneçam as sementes de amor
que brotam em seus corações e devem ser adubadas com pingos diários
de respeito, boa vontade para ouvir e solidariedade para ajudar na construção
de um futuro melhor para todos nós!
Nós podemos fazer a diferença na verdade do futuro.