A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Regabofe em cima do caixão

(Celso Manhiça

O suicida ficou entalado na roda do camião. Mas antes que se lhe rebentassem as águas da morte, chamou o camionista e disse-lhe, baixinho, com aquela voz de gado:

- Enterra-me com um frasco de vaselina, que é para eu me "divertir" no inferno. Mas não é qualquer vaselina; tem que ser Claire, porque as outras aquecem muito. E cuida lá da minha gente!

A cara do camionista parecia ter levado um tiro na barriga, a olhar assim para o suicida, como se o suicida tivesse duas cabeças. "Há gente que brinca de morrer e há outra que morre a brincar. Este morreu nas brincadeiras!".

Depois da festa do enterro, tangerinas e salada, o camionista ficou "amigado" com a viúva do suicida; rancho no fim do mês e sexo na posição de missionário, duas vezes por semana. Os fedelhos dela chamavam o camionista de "Tio"; o tio que lhes distribuía pirolitos e virava as pálpebras ao avesso para entretê-los enquanto lhes subia a mãe.

Acontece que, o camionista não era casado sozinho. Para além da esposa que casou na igreja e no registo, tinha quatro crianças do mesmo sangue, debaixo da axila. Teve que passar a fazer part-time na sua própria casa e fazia de homem-a-dias em casa da viúva e dos fedelhos do suicida. O resto do tempo passava na estrada, com o rabo ao volante do ganha-pão.

As pontadas no estômago da legítima começaram a latejar quando ela sentiu uma viragem de agulhas na linha-férrea das vidas, sua e na dos pequenos. O marido dela andava a apertar o cinto até ao último buraco: fez-lhes uma vasectomia aos mata-bichos e lanches e vendeu o abre-garrafas, passando a abrir a cerveja com os dentes. E depois andou a desviar todo o sexo que ele tinha, para a casa da viúva. Ela e os filhos, o bicho dele, nem vê-lo!

A casa-mãe, onde o camionista tinha laços de sangue, passou a ser a casa-dois . A legítima ainda tentou fazer implantes mamários e diminuiu as "papas" do pescoço para segurar o marido em casa, debalde! Endividou-se com agiotas e organizou uma festa de anos para o marido camionista, seis meses antes do aniversário dele. O homem não pôs lá os pés, entretido em se engalfinhar com a viúva do suicida, que não precisava de mamas postiças nem de um pescoço novo. E tinha lá umas coxas...

Mas depois começaram as matemáticas do fim do mês, aquilo de dividir tudo ao quadrado. O salário dele pegou num alfinete e começou a picar-lhe o rabo. Teve que decidir entre a mulher gorda que precisava de implantes p'ra ser mulher e a outra que não carecia de tais suplementos. Neste tipo de decisões, os homens são todos farinha da mesma coisa: mudou-se para os seios da viúva.

A legítima não se conformou! São as mbuyas que levam as legítimas ao pecado: foi a Mambone buscar o livro envenenado que matou Mondlane e deu-o ao marido p'ra ler. "Se ele não fica comigo, não fica com mais ninguém!". E não ficou mesmo! A morte barrulhenta decretou-lhe um recolher obrigatório.

No dia em que o caixão de madeira ia descer ao cu da terra, as duas senhoras cruzaram-se mesmo em cima do portão do "Lhanguene" . A legítima olhou p'ra rival com "aquela cara", a morder o maxilar, com uma vontade louca de lhe furar os olhos com o dedo fura-bolos. A escolhida olhou para os lados à procura de uma pedra-cidade para partir a cabeça gorda da legítima ou pelo menos dum pau de vassoura para lhe enfiar no rabo até sair pela boca. Ambas tinham necessidade de se ferir gravemente.

Quando as duas soltaram as cadelas dentro de si, a assistência não conseguiu separar. A legítima pegou na cabeça da outra e tentou arrancá-la do pescoço enquanto a mbuya, com menos quilos no corpo, mais estofo e jogo de cintura, tentava arrancar-lhe as mamas postiças, para a desmoralizar socialmente.

O balanço do regabofe foi trágico para a legítima: Se não tivessem separado a tempo, ela havia de acompanhar o ex-marido até ao último endereço. Ficou com umas medonhas nódoas negras debaixo dos olhos e o maxilar deslocado. Mas estava contente por ter conseguido morder a outra no braço. Foi o que lhe disse para fazer, a curandeira de Mambone, depois de lhe ter dado umas raízes amargas p'ra mastigar: Você só lhe Mordes bem com os dentes; Vais ter a tua vingança!

Dito e feito: Em menos de uma semana, a mbuya morreu de raiva.

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