A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Lupas & partidas

(Belvedere)

Hoje, quando ia à clínica fazer minha sessão de RPG, lembrei-me da época que acordava cedo e ia trabalhar no hospital. Fiz o mesmo trajeto, mas não encontrei as mesmas pessoas que encontrava no dia a dia.

Primeiro passava pelas casinhas geminadas, branquinhas, com jardim, e ouvia o barulho do ar-refrigerado. Era cedinho... Eu dizia para mim: "Que durmam em paz! Eu vou cuidar dos meus doentes e já dormi o suficiente." E ia feliz da vida!

No caminho, encontrava Maria da Graça que lavava a calçada e os minicanteiros e cantarolava. Sempre perguntava se não incomodava o sono alheio com aquela cantoria tão cedo. Ela dizia que o pessoal gostava. Será?

Mais adiante, encontrava Dr. Nicolau todo paramentado também indo para o hospital. Algumas vezes me dava carona, mas em uma dessas, teve que parar antes em um local e ficou, e acabou me deixando mais longe do hospital do que se eu tivesse ido de ônibus. A partir dali nunca mais aceitei suas caronas. A desculpa que dei foi que o meu noivo andava enciumado.

Essas lembranças todas me trouxeram à mente Dr. Humberto dos Santos, médico da família por várias décadas. Sempre achávamos que ele resolveria tudo. Uma espécie de deus. Na sua mão ninguém morria, em nossa visão fanática ele quase ressuscitava as pessoas. Qualquer problema, do mais simples ao mais escabroso, era Dr. Humberto a solução.

Um certo dia, soubemos que ele já não estava enxergando devido a seqüelas de doença que não vale a pena citar. Já lia os exames com lupa e não tinha o mesmo pique. Era ainda novo para que cessasse suas atividades profissionais. Cheguei a conversar com ele sobre o caso. Ele gostava muito de bater papo comigo, pois, como eu, vivia lendo de tudo que fosse bom!

O tempo é inexorável, e um dia nos chega a notícia de que ele havia morrido.

Como? Ficamos atônitos. Ele não era pessoa que morresse...

Morreu, assim como todos morreremos um dia, assim como muitos pacientes dele. Foi o que ouvimos para que acordássemos!

O que me trouxe à mente a imagem de Dr. Humberto dos Santos? Pensei que se ele estivesse aqui eu não estaria sofrendo há tanto tempo com três hérnias de disco. Certamente daria um jeito. Chegava a ser sobrenatural o seu estilo.

Por que ele não curou o que tinha? Nunca entendi. Faz parte de um grande mistério.

Faltou a ele força de vontade diante da adversidade? Como posso saber? Meu poder é tão limitado!

Sei que é um ser inesquecível e... que falta faz!

  • Publicado em: 16/05/2005
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