(A Jorge Amado, in memoriam)
Num bloco de couro, antigo, onde coloco os títulos de livros que leio,
hoje registrei o número 923.O livro é: 64 contos de Rubem Fonseca.
Faço uma retrospectiva através dessas páginas e me vejo muito
jovem, lendo A Divina Comédia, de Dante. Para muitos seria um desestímulo
começar com tal título, pois para mim foi tão extraordinário,
tão cheio de encanto, que me apaixonei por livros. Comecei, então,
a devorar clássicos antigos e contemporâneos. De Dante passei a Camões,
Milton, e a cada dia mais me integrava ao mundo das Letras.
Houve época que só lia Jorge Amado. Devorei todos os livros da coleção
distribuída por Fernando Chinaglia. Jorge tem um estilo que me leva aos
locais descritos e até me sinto interagir mentalmente com seus personagens,
que sempre me parecem familiares. Jorge Amado marcou minha carreira de leitora.
Lembro-me que quando ia a Salvador, me hospedava numa casa na Rua Alagoinhas,
bem perto da em que ele residia. Tudo fazia para encontrar meu ídolo. Nunca
tive sorte, mas as pessoas diziam: - um dia, quem sabe? Da última vez que
fui, ele já não estava lá. Decerto já havia até
se encontrado com todos os seus personagens! Senti saudade do tempo que não
conseguia encontrá-lo, pois sempre havia a esperança implícita
na frase: um dia, quem sabe?
E fui conhecendo um mundo maravilhoso... Clarice Lispector, Dalton Trevisan, Cecília,
Drummond, Adélia, Pessoa, Lorca, Florbela, Neruda, Hemingway, Jean Paul
e Simone...
Agora, tenho opinião firme em relação às minhas preferências
literárias. Thiago de Mello é meu poeta preferido. Definitivamente.
O escritor Bernardo Carvalho foi uma surpresa, um impacto na minha carreira de
leitora, assim como Mia Couto. Por vezes me peguei prendendo a respiração
enquanto lia Nove noites, de Bernardo e Estórias abesonhadas, de Mia. Permaneci
em estado de encantamento por um longo período.
Conheci Caio Fernando Abreu após sua partida. Sorvi avidamente muitos dos
seus livros. Ganhou minha admiração. Suas crônicas são
excelentes. Um ser místico, inteligente e poético. É um de
meus favoritos. Lastimo sua partida precoce.
Katherine Mansfield afaga meu coração, através de seus maravilhosos
contos. Graças a ela, agora tento detalhar ambientes e mostrar características
psicológicas de personagens, nas crônicas e contos, coisa que não
ousava fazer. Hoje tateio nas descrições. Um dia, quem sabe?
Tenho um vício do qual pretendo me libertar. Sempre que escrevo a um escritor
que admiro, digo: um dia vou escrever igual a você. Não. Um dia escreverei
bem. Hoje engatinho pelo caminho das Letras. Sou uma aprendiz, e observo, infelizmente,
estrelismos vindos de autores não consagrados, desconhecidos, enquanto
através dos consagrados recebo palavras simples, afetuosas. São
muitos os escritores renomados despojados dessa vaidade tola, e que deveriam ensinar
aos que, ainda titubeantes, pensam que alcançaram o Reino dos Céus...
Glória a Lya Luft, Martha Medeiros, Hilda Hilst, Orígenes Lessa,
Ledo Ivo, Fernando Sabino, Agualusa, Paul Auster! Que me perdoem os que omiti,
certamente por falta de espaço. Se continuasse, não acabaria nunca
essa retrospectiva.
Um dia, quem sabe, eu venha a ser uma escritora, na verdadeira acepção
da palavra?
Que eu continue dizendo: "um dia, quem sabe?", estando, aí, viva,
a chama da esperança...Que seja uma espécie de mantra.
Diferente daquele dia que passei em frente a casa de Jorge Amado, e com tristeza
infinita devido a sua ausência, não pude mais ouvir a frase que sempre
me acompanhava nas passagens pela Rua Alagoinhas.