A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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O Primo

(Belvedere)

Após muito relutar, resolvi visitar César Bruno.

Conheci-o em um coquetel oferecido após a pré-estréia de um filme nacional, no Rio de Janeiro. Ele achou uma coincidência encontrar uma Bruno e começou a indagar sobre parentescos. Seríamos primos? "A família Bruno anda espalhada e muitos não se conhecem", falou. Concordei. Lembrei quando em plena faculdade descobri três primas que moravam aqui, na mesma cidade que eu.

Eu e César passamos a cultivar uma bela e sólida amizade, e há algum tempo passamos a nos considerar primos. Para mim é uma satisfação tê-lo como amigo. Culto, amante das letras, cinéfilo como eu, e ainda ousa escrever poemas. Nunca disse a ele, mas imita demais o Fernando Pessoa.

Gostamos de conversar sobre as críticas de cinema dos jornais e revistas. Sempre discordamos delas. Um absurdo a gente adorar um filme e ler a crítica metendo o pau. Ou, o contrário, odiar um filme e ler a crítica colocando-o nas alturas. Muitas vezes a esposa dele, Inês Maria, tem crises de riso e pergunta se não temos mais com o que nos preocupar. Como pode entender o universo de cinéfilos?

Há dois meses soube que César adoecera. Como imaginar aquele ser tão cheio de vida, tão esfuziante, doente?

Chegou a hora de tomar coragem.

Peguei um filme bem antigo — "A condessa descalça" — e levei. Seus olhos brilharam quando me viram. Falei sobre o filme e sobre a beleza de Ava Gardner. Como eu, ele diz que nunca houve mulher mais linda no mundo. E conversamos sobre muitas coisas. Ofereceu-me um licor delicioso, o Amarulla. Aproveitei para falar do meu preferido, que é o Amaretto. E aí ele começou a falar sobre licores. César sabe falar sobre qualquer assunto.

Homem genial, pensava eu, quando de supetão perguntou: "Posso te contar uma coisa?" Respondi que podia, sem dúvida. O que ouvi deixou-me boquiaberta. Narrou o sacrifício que tinha sido para ele ficar esses 36 anos casado. Nunca amara Inês Maria. Aos 16 anos, sem nenhuma experiência de vida, tivera uma filha com uma moça simples, que morava na roça. Chamava-se Rosa. A família dele tudo fizera para ocultar o fato. Ele sequer dera nome a criança. Nunca mais viu Rosa, nem a filha.

Agora, doente, tudo vinha de forma tão intensa e doída que sentia vontade de morrer para que a angústia cessasse.

Perguntei se não podíamos procurar a filha. Ele negou-se. Disse que certos fatos cabiam muito bem em filmes, mas não funcionavam na vida real. Que deixassem ele chorar o não vivido...

Saí triste. Não sei que doença tem o César. Não sei como passará esses dias imerso nessa dor, cheio de remorso...

Sei que preciso rever o amigo, porém tudo mudou. A conversa nunca mais girará sobre cinema, críticos, Ava Gardner...

A sombra de Rosa ronda seus dias, e eles andam tão cheios de brumas que estremeço.

  • Publicado em: 08/11/2004
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