A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Não creio, mas que existem, existem...

(Belvedere)

A incapacidade do ser humano para aceitar perdas é uma das coisas que mais me surpreende.

Lembro-me de Isaías e Miriam. Casados há vinte e seis anos, viviam às turras devido ao mau uso do dinheiro por parte dela, a despeito do alto salário que recebia. Ao final do mês, avançava no salário dele, que ganhava bem menos . A coisa foi assumindo proporções dantescas, a ponto de Isaías ter se valido do fato de ter reencontrado Vânia Lima, para justificar o pedido de separação. Alegou ter sido ela o grande amor de sua vida e que não abdicaria do direito de ser feliz agora.

A separação acontece. Miriam se desequilibra de forma preocupante, mas a vida tem que continuar. O novo casal passa a viver seu dia-a-dia em verdadeira lua-de-mel.Quanto a Miriam,que agora colhesse tudo o que havia plantado!

Numa manhã, quando caminhavam pela orla, encontram Miriam "de tocaia". Ela se aproxima, reclama estar recebendo telefonemas diários para ele em sua casa e lhe passa um recado para que compareça ao trabalho com urgência. O fato causa estranheza a Isaías, por ser um dia de folga, mas imediatamente acata o recado e vai.

As duas ficam, então, juntas, e Miriam, entre lágrimas e soluços, pede que Vânia entre em seu carro para conversarem no mirante, que ficava bem perto. Vânia aquiesce. Durante o caminho, vê que o trajeto não era aquele. Assustada, diz:- Para onde você está me levando? E Miriam, sorrindo, diz: - Para minha casa. Sem demonstrar o medo que sentia, Vânia começa a puxar conversa. Fala sobre o tempo, o sol, o mar, mas Miriam continuava fixa no volante, emudecida. - O que estaria passando por sua cabeça?, pensou Vânia. Na realidade, o que Miriam estava fazendo se constituía numa espécie de seqüestro, pois estava levando Vânia para um local diferente do combinado e contra a vontade dela.

Ao chegarem a casa, foram recebidas por dois cães enormes e Vânia sentiu medo . Miriam, para mostrar sua posição hierárquica , enfatizou: - Eles só obedecem a mim. Vou pedir que não ataquem você. -Fora, Strong! Fora,Highlander!

Duas horas depois, Isaías retornou, tendo deduzido sobre o ocorrido. Irado, ameaça Miriam. Disse que daria parte à polícia, pois, segundo ele, o que ela havia feito era crime. Ela fingia nada ouvir. Deixava o casal constrangido ao falar das preferências sexuais dela e de Isaías quando casados, tornando aquelas horas um verdadeiro pesadelo. Quando ele dizia que já estava na hora de ir embora, ela agarrava Vânia e dizia: - Ela fica. E Vânia fazia papel de ping-pong.

Que situação mais bizarra! Para piorar a coisa, Miriam começa a chorar convulsivamente . Vânia, mais uma vez, se compadece e diz que sentia muito ser a causadora de tudo. Ao que Miriam responde :- "Você destruiu minha vida! Mas sou superior e quero lhe dar este bracelete de presente. É o que mais gosto." E colocou um lindo bracelete de marfim no pulso de Vânia. O casal, enfim, saiu, deixando Miriam sobre sua cama, imersa em profunda agonia. Seu quarto estava com as paredes grafitadas por ela, fruto da instabilidade emocional em que se encontrava e sua casa parecia a Torre de Babel, tamanha a desorganização .

Vânia admirava o bracelete durante o percurso. Nunca vira um igual.- Por que teria recebido tal presente? pensava, sem nada exteriorizar.

No dia seguinte, não conseguia levantar-se da cama, como se uma tonelada estivesse sobre suas costas. Não podia sequer se mexer. Sensação de terror. Sua mãe foi chamada e, ao vê-la naquele estado, observou o bracelete, para ela, desconhecido. Toda a história lhe foi narrada. Ela disse com firmeza: -Isaías, jogue isso fora, imediatamente! E, com um martelo na mão, no meio-fio da rua, bem diante da casa deles, Isaías dava fim ao bracelete,

sob o olhar de espanto de alguns transeuntes, mais impressionados com sua expressão facial do que com o ato da destruição.

À noite, Vânia se levanta e nada sente. Não quer acreditar que a energia da rival tenha derrubado logo ela, que pensava ter no "Orar e Vigiar" uma de suas maiores diretrizes de vida.

Quanto a mim, recorro à máxima: 'Yo no creo en las brujas, pero que las hay, las hay'

  • Publicado em: 25/10/2004
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