Não sabia o porquê daquela constante indecisão de Mércia.
Tudo era motivo para intensas reflexões, como se a vida fosse um emaranhado,
e tivéssemos a obrigação de viver tentando compreender
o incompreensível.
Havia em suas atitudes um misto de desprezo e medo. Era uma mulher enigmática.
Seus olhos sempre buscando, as unhas roídas, contrastando com seu estilo
moderno e de alto nível no trajar.
Nunca pude conhecê-la senão por fora. Admirar seu porte majestoso,
os olhos azuis, os cabelos louros em cachos, salpicados por margaridas, o que
a tornava ainda mais sedutora. Nunca tive coragem de colocar flores nos cabelos
como ela fazia. Aliás, poucas mulheres ousavam fazer isso - superando
seus medos e inseguranças.
Tentávamos dar um tom coloquial a nossa amizade, mas havia algo além.
Era como se uma barreira intransponível existisse entre nós. Nunca
conseguimos decifrar os sentimentos que nos rondavam e que, muitas vezes, nos
forçavam a perguntas indiscretas que geravam mal-estar e afastamentos.
Um dia, em plena rua, sem maiores explicações, ela teve uma crise
de pânico, achando que seria seqüestrada. Chorava incontrolavelmente.
Ali, pude notar que sua sanidade mental estava comprometida. As margaridas foram
caindo uma a uma...
Só pensar em afastar-me dela, causava-me intensa inquietação.
Não conseguiria viver sem sua voz, sua doçura um tanto infantil,
e seus olhos, sempre a suplicar minha presença.
Uma noite, lembro-me bem, dois de maio, saímos e tomamos um delicioso
vinho tinto chileno. A noite estava fria. Durante o tempo todo, falamos sobre
amenidades. Despedimo-nos e, no dia seguinte, fui despertada por seu marido
ao telefone dizendo que ela havia morrido. Seu carro despencara numa ribanceira.
Provável suicídio, era o que afirmavam.
Seu marido ligou-me diversas vezes durante seis meses, tentando descobrir onde
estava o nó que paralisara a vida de Mércia. Era difícil
para ele aceitar que eu nunca conseguira descobrir.
Por quê? Mil vezes essa pergunta martelou os meus dias, deixando-me insone,
desesperada, e imersa num vazio que parecia não ter fim.
Nesses dias que correm, a imagem de Mércia inunda as noites de frio,
preenche pétalas de todas as margaridas, já que deixou nelas a
marca indelével de seus fios de cabelos... até hoje escuto sua
voz a me dizer: - Nunca, em tempo algum, de paz ou guerra, me deixe só...
Vivo plena de Mércia, embora mais de vinte anos se tenham passado. Ainda
resiste, jovem, bela, enigmática, e como uma dama da noite, entra nos
meus sonhos, e me fala sobre coisas que não ouso revelar por medo das
sombras...