A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Ostracismo

(Belvedere)

Nos últimos tempos, Júlio relembrava, como num flashback, toda sua vida.

Desde que adoecera, as coisas tiveram que ser redimensionadas. As dificuldades eram imensas.O plano de saúde já havia deixado de pagar há um ano, e isso significava o não atendimento por parte das seguradoras e as peregrinações pelos hospitais públicos do Rio de Janeiro.

Chegando ao atual emprego, num balcão de peixaria em bairro nobre, falou ao seu patrão:

- Seu Anísio, me desculpe, mas ando cansado da lida. Nem pareço ter cinqüenta e dois anos. Essa doença veio para me castigar. Não sei o por quê, mas não aceito senão como castigo.

Seu Anísio, que o acolhera quando ele perdeu seu emprego numa imobiliária, onde ganhava relativamente bem, tentou animá-lo:

- Júlio, tenha paciência! A doença a gente vence com tratamento e reza forte, homem!

Mas Júlio não estava em tempos de esperança. Replicou:

- Não sou homem de rezas, sou racional. Isso de ficar de joelhos e suplicando a Deus por tudo, mais parece coisa de pedinte e eu não sou.

Seu Anísio, um tanto surpreso, atribuiu o rompante ao estado de saúde do amigo.

Era descendente de italianos. Sua família viera para o Brasil, fixando residência em São Paulo, e, dois anos depois, ele nasceu. Com o passar dos anos, a família enriqueceu com os negócios, embora ele mesmo não soubesse especificar quais eram os negócios.

Resolveu, então, que não participaria deles e faria o seu próprio caminho. Ingressou na Faculdade de Direito, e, anos depois, estava formado. Logo estava casado, e com um casal de gêmeos. Sua vida era calma, normal. Embora desfrutasse de extremo conforto, seus pais ainda o mimavam com doações descomunais. No íntimo, sempre desdenhara aquele dinheiro, como se não fosse parte de seu destino.

Os pais morreram em um acidente aéreo no exterior, deixando para ele toda a fortuna. Sob o impacto da perda, contratou um colega para que tratasse dos bens materiais.

O tempo ia passando e mais as coisas pareciam enroladas. Após um ano, concluiu-se que não havia bem algum. Tudo estava comprometido com as dívidas do pai, que sempre fora apoiado pela esposa em suas extravagâncias. Para ele nada sobrara, senão uma profunda vergonha. A mansão da família foi a leilão, e logo ele decidiu mudar-se dali e vir para o Rio de Janeiro, certo de que teria oportunidades variadas.

Agora, lembrava-se dos filhos, que decidiram viajar para Portugal e lá fixaram residência há mais de cinco anos, vindo visitá-los ,esporadicamente.

- Não há alegria alguma em minha vida, e agora ainda a doença. O doutor disse que semana que vem farei uma transfusão de sangue, pois já estou com anemia... Sinto medo. Tudo é desconhecido. - dizia com a voz embargada.

Os dias passavam e as coisas pioravam. Júlio emagrecia a olhos vistos, suas roupas pareciam dançar no corpo, as olheiras mais se afundavam .

- Acho que vivo pouco. Não duro muito, não. - dizia aos amigos. - Além disso, ainda não consegui a vaga no hospital indicado para meu caso. É difícil demais. Disseram que procurasse um político, mas não sou dessas coisas. O cidadão tem seus direitos, e cabe ao Estado dar saúde e educação. Direitos de cidadania que têm que valer.

Os amigos ouviam com um misto de perplexidade e piedade.

Ao reencontrar Patrícia, filha de um grande amigo do passado, ficou feliz. Jovem de 23 anos, que não via desde adolescente. Cursava medicina e dessa forma procurou ajudar Júlio no que ele necessitasse.

- Seu Júlio, seus filhos já sabem de seu estado?

Não, querida. nada contei para não causar preocupação - São jovens ainda.

- Mas que jovens? São mais velhos que eu, e o senhor precisa deles junto a si, o que é isso? Seu caso é sério, e, nessa hora, os filhos têm que estar junto. Senão, qual a razão de se formar uma família?

Ela procurou saber o endereço deles e escreveu uma longa carta, explicando o estado de saúde do pai e as necessidades materiais em que vivia.

Júlio foi internado, : protestando veementemente, após uma séria hemorragia. Na enfermaria reclamava de tudo, tratava mal os funcionários, não aceitando o tratamento, de forma que logo se tornou um paciente difícil e cansativo. Seu estado piorava a cada dia, visto que a doença era incurável. Suas resistências minadas, e as infecções chegavam uma após outra. Estava num hospital cujas condições eram precárias. E o pior de tudo é que havia sido uma via-crúcis conseguir a vaga. Sua esposa, Anália, sempre lhe dava alento; mas, nem ela se livrava da agressividade de Júlio, que aumentava à medida que piorava seu estado .

Eis que chegam os filhos, Beatriz e Gilberto. Quando olham o pai, disfarçam, e contendo as lágrimas o abraçam e vão para o corredor chorar.

- Como pudemos ficar tão distantes de nossos pais? - disse Guilherme.

Beatriz, mais fria, respondeu:

- Quando saímos do Brasil tínhamos uma meta e estamos cumprindo. Se cada fato novo nos trouxesse ao Brasil, não teríamos chegado onde estamos.

Conversaram com os médicos, tomando ciência do estado real do pai e também de que ele teria poucos dias de vida.

Depois de muito analisarem o caso, decidiram que o melhor a fazer era colocar o pai num hospital particular e arcar com as despesas. Pediram orientação à Patrícia em relação a médicos e hospitais e decidiram permanecer uma semana no Brasil, tempo suficiente para o pai ser transferido para um hospital de grande porte, com tratamento de excelente padrão. Logo depois, voltaram para Portugal. A decisão fora tomada com bastante firmeza. Dariam suporte financeiro aos pais. Tranqüilizaram a mãe, dizendo que lhe enviariam mensalmente dinheiro para sua manutenção e que não se preocupasse. Só não poderiam estar presentes. O trabalho deles necessitava da presença constante dos mesmos. A mãe sem nada dizer, balançou a cabeça e sorriu levemente...

Júlio permaneceu vinte e um dias internado, acompanhado pela esposa e recebendo a visita dos poucos amigos que tinha. Sempre falando que não aceitava estar num bom hospital apenas porque os filhos tinham dinheiro. Nunca havia pensado que as coisas pudessem ser assim. O cidadão não ter direito a um tratamento de saúde digno, a necessidade de peregrinações, as negativas, as dificuldades nos exames, tudo só resolvido com a chegada dos filhos e, conseqüentemente, do dinheiro. Dizia:

-Não quero que nenhum tipo de manobra artificial seja tentada para me manter morto-vivo. Abomino tais práticas. Que me deixem morrer com dignidade!

Nos seus últimos dias, perguntava à esposa:

- O que fizemos com nossa família? Onde erramos? Lágrimas profusas desciam pelo seu rosto. Tristeza infinita. Viam-se sós. O que fizeram com a criação dos filhos? Não sabiam. Tudo isso tornava o quadro ainda mais desalentador.

Morreu no quarto, inconsciente, com sua esposa segurando suas mãos e orando um "Pai- Nosso", embora, até o último instante de lucidez, ele abominasse quaisquer interferências em termos espirituais.

  • Publicado em: 26/07/2004
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