Zenaide, nos seus oito meses, com a barriga já pesando, aguardava a
presença de Carlinhos, para que ele, enfim, dissesse se registraria ou
não a criança.
O tempo passara desde que ela havia comunicado a gravidez; ele, fingindo satisfação,
dissera que curtiria a criança, fosse macho ou fêmea. Tiveram um
relacionamento relâmpago e, numa noite regada a cachaça, a criança
foi concebida.
Agora, uma profunda ira tomava conta de Zenaide que, agitada, dizia ter sérias
contas a ajustar com ele.
Sabia que Carlinhos era mulherengo. Gostava de beber, embora a bebida em nada
interferisse em suas atividades, nem alterasse para pior o seu humor. Era como
se soubesse a dose certa para seu organismo. Acomodara-se, no entanto,a uma
vida de jovem descompromissado e isso servia de comentário constante
entre os que conviviam com ele. Aos 45 anos, ainda estava na casa de sua mãe,
dizendo, como desculpa, que era para cuidar dela, quando todos sabiam que era
pura questão de economia. O que Carlinhos queria era que sobrasse dinheiro
para suas noitadas, que incluíam bebidas e mulheres.
O dia estava chuvoso e, no morro, o cheiro era insuportável. Zenaide
sentia náuseas sem fim, vontade de sumir, arrependimento pela inconseqüência
de seu ato. Trazia uma criança em seu ventre, pesando seus dias, tornando-a,
praticamente, uma pessoa sem rumo na vida.
Nenhum exame médico fizera nesses oito meses. Tudo difícil. Faltava
dinheiro até para a comida, pois, mesmo grávida, não conseguia
sequer uma cesta básica.
No morro, a luta entre facções se agravava a cada dia. Receava
sentir as contrações quando a luta tornasse os dias mais pesados,
com as fileiras de corpos expostos e as ordens vindas das lideranças,
muitas vezes impedindo o ir e vir dos moradores. Conhecia muito bem a lei.
Eis que surge Carlinhos, com sua usual camisa estampada e bermudão de
duas cores, com a barriga de fora. Uma barriga grande que, exposta, tornava-se
até indecente, segundo Zenaide. Vai logo dizendo que não fez o
filho sozinho, que não está a fim de ouvir reclamações
de mulher prenha. Zenaide não resiste a tanta agressão e parte
pra cima dele com sua força de mulher ultrajada em seus direitos .
A gritaria resulta na chegada de uma "comissão de ética"
do morro, que resolve, de imediato, o problema. Eles se comprometem a não
perturbar a "paz" reinante. Afinal de contas, Carlinhos nem era da
área. O pessoal andava mesmo de olho nele e, bastou um deslize, para
que colocassem as regras .
Exatamente quinze dias depois, estão ambos deitados, quando Zenaide começa
a sentir as contrações. Já tivera oito partos, sempre doando
as crianças logo que nasciam. Sabia que seria rápido. No morro,
o clima era de guerra. Tiros se entrecruzavam nas subidas, entravam pelos botecos,
pelas casas e ela a sentir o aumento das contrações. Como sair
do morro em meio àquele caos? Tal como havia previsto.
Subitamente, lembra-se de Dona Carlinda, mulher do barbeiro. Diziam que ela
era parteira. Carlinhos corre em meio ao tiroteio e chega à casa dela.
Conta o sucedido e ambos vão, com muito cuidado, fugindo dos tiros, rumo
à casa de Zenaide. Chegam no exato momento em que ela dá à
luz uma menina. Era uma criança forte, grande, sequer parecia vinda de
uma pessoa tão mal nutrida como Zenaide.
Os dias passam e ela, enfim, diz a Carlinhos: - Vou doar ou você assume
a criança? Ele começa a andar de um lado para outro. Olha a menina.
Sorri. Começa, então, seu discurso: - No início, não
queria saber de criança, não. Falei que assumiria por falar. Agora
que estou perto dela, fico imaginando os dias que virão e não
consigo me imaginar longe dela. Penso em dar o nome de Patrícia Angélica
a ela. O que acha? Gostaria de convidar Dona Carlinda e o marido para padrinhos.
Vou logo dizendo que, semana que vem, vamos dar no pé daqui e morar num
lugar mais calmo. "Tô" cansado de tiroteio. E tem mais: já
arrumei um emprego pra você, que oferece creche pra nossa filha...
Zenaide, calada, sequer tinha oportunidade de responder a nenhuma das idéias
dele.
Uma baderna, seguida de novos tiroteios, assusta Carlinhos. Ele
chama Zenaide e diz que, tão logo cesse a balbúrdia, descerão
o morro. Deixarão tudo e levarão apenas Patrícia Angélica.
Iriam para a casa da mãe dele, até que conseguissem um local apropriado
para residirem. Naquela noite, Zenaide sentiu que passara a ter um rumo em sua
vida. E sorriu, esquecendo tiroteios e abraçando, com carinho, ambos
os seus amores.
Tiros e gritarias... Zenaide, encolhida em seu leito, questiona-se, em lágrimas,
se não teria sido melhor ter agüentado o autoritarismo de Carlinhos.
Ao menos, teria um teto decente. Era moço bom.
- É, acho que tenho aquela doença ... a doença do sofrer.
A doença dá e a gente só procura coisas pra sofrer. Vou
até o posto de saúde amanhã. Tomara que esteja aberto.
Ainda bem que deixei a menina direto com Carlinhos. Criança só
serve para atrapalhar mesmo!
- Parece, também, que estou prenha novamente. Enjoando, com muito sono
e há três meses que não vem...