Bertha olhava-se ao espelho, observando, minuciosamente, as marcas do tempo
em seu corpo. Dizia: - Como a vida é cruel! Nesse mesmo espelho, vi meus
cabelos sedosos, que, hoje, minguam; minha pele com elasticidade, hoje vincada,
flácida, e meus olhos... ah, meus olhos! Eram cheios de brilho e hoje
estão opacos.
Não cansava de se olhar com extrema tristeza, não aceitando a
entrada em seu crepúsculo. Mergulhada nesses pensamentos, ouviu a campainha
tocar e foi, a contra-gosto, atender. Sabia que só poderia ser alguém
do próprio edifício, pois o interfone não tocara.
Havia se separado de Flávio há seis meses, e tudo parecia por
demais pesado para ela, embora a separação tivesse sido de comum
acordo. Os filhos já casados viviam sua vida. A ela couberam o apartamento,
um carro e uma pensão relativamente boa. Não tinha do que reclamar
em termos materiais. O ex-marido e os filhos apenas a procuravam em ocasiões
especiais, pois ela sempre passava negativismo, e seu mau-humor foi, aos poucos,
afastando tanto os familiares quanto os amigos.
Ao atender a porta, viu a figura de dona Isabel Cristina, a professora de piano.
- Bom dia, dona Bertha! Vim convidá-la para um recital de piano que farei
num clube, comemorando o cinqüentenário do mesmo. Outros artistas
foram incluídos nessa lista. Será uma bela festa. - disse.
Ao ver o convite, Bertha ficou impressionada com o destaque dado a dona Isabel
Cristina. Pediu então que se sentasse, e começaram a conversar.
A pianista falou sobre a felicidade que sentia cada vez que levava música
aos corações. A sua arte era, para ela, um bálsamo. Aos
oitenta anos, sentia-se em plenitude física e espiritual, dizia; e seus
olhos comprovavam, pois tinham um brilho que só as pessoas gratas à
vida possuem.
Bertha olhava suas rugas, seus cabelos brancos e impressionava-se com a força
interior da mulher. Sua vivacidade contrastava absurdamente com a dela, que
tinha sessenta e cinco anos.
Dona Isabel Cristina trouxera uma bolsa, e, mais tarde durante o lanche, dela
tirou um álbum de fotografias e o mostrou a Bertha. Ali, estava parte
da história de sua vida. Ela casada, ainda bem jovem, com os filhos ainda
crianças, os passeios a serras, praias,e o marido sempre aparentando
um carinho extremo para com a família. Uma bela história de vida.
Dona Isabel falou:
- Meu marido Jairo se foi há quinze anos, e nossos filhos e netos residem
no exterior, e só os vejo uma vez ao ano. Algumas vezes eles vêm,
e outras eu vou. Aceito que, por contingências do destino, tenhamos que
viver tão distantes. Quando nos encontramos, a felicidade é tão
grande, que não me importo se logo retornarão a seus países.
Isso é a vida, temos que compreender. Da mesma forma aceitei a partida
de Jairo após tantos anos de união, certa de que cumprimos nossos
compromissos e que a nós foi dada e aproveitada a chance de sermos felizes.
Bertha, como que magnetizada por aquelas palavras, falou sobre suas preocupações,
sua velhice que vem chegando, as rugas, e teceu um rosário de lamentos,
em nenhum momento mencionando filhos, netos, como se só ela existisse
dentro daquele contexto. Dona Isabel Cristina ainda disse:
-Todo tempo tem seu valor, e toda idade, sua graça. Não desperdice
sua vida com bobagens e vaidades estéreis.
Ao sair, abraçou-a e disse que a esperaria no recital. Na verdade, dona
Isabel Cristina sabia como estava frágil a vida daquela senhora. Tinha
que estimulá-la, trazê-la de volta à realidade.
Bertha voltou ao espelho, mirou-se mais uma vez, dizendo:
- Não é possível que o tempo tenha passado tão célere
e descompassado... O espelho mente! Não posso ser assim.
E, abrindo seu álbum de fotografias, mergulhou naquele passado, buscando
sua infância, juventude, cristalizando-se naquele tempo.