A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Decisão errada

(Belvedere)

- Estou precisando mudar essa minha vida. Já estou cansado de trocar de mulher e, na verdade, não ter nenhuma na hora em que mais preciso. Já é tempo de escolher a definitiva. Assim pensava Humberto dos Santos, funcionário público, moreno bonito e bem vestido, numa roda de samba em bairro de periferia. Enquanto olhava as moças sambando, ele bebia cerveja com os amigos e sentia um imenso vazio. Nada daquilo tinha mais sentido para ele.

- Preciso casar e Maria Helena é a que mais me atrai. Ela ainda é jovem, gosta de trabalhar e é muito bonita para estar se estragando como empregada doméstica. Posso dar, a ela e aos seus três filhos, uma vida boa.- refletia, alheio ao que ocorria ao seu redor. Subitamente, um amigo lhe perguntou: - Por que anda tão calado? Não está gostando dessas moças tão interessantes?
- Claro que sim, como não? - respondeu Humberto e saiu disfarçadamente, deixando algumas notas sobre a mesa para pagar o que consumira.

Passados alguns dias, se declarou a Maria Helena. Sentiu, então, a ira da irmã mais velha, Marilda. Ela queria para ele sua amiga íntima, Iracema Freitas, professora, moça culta e delicada, o oposto da que Humberto havia escolhido. Marilda repudiava Maria Helena, sem que houvesse motivo algum, além da diferença sócio-cultural.

Esbravejando, ela falou: - Você demora tanto a escolher e agora, aos quarenta e sete anos, escolhe uma moça de vinte, com três filhos. Burrice mesmo!Iracema sempre foi apaixonada por você, é bonita, por que não a quis? Ele, com firmeza, respondeu: - Tive muitas mulheres, experimentei todos os gêneros, mas meu coração é de Maria Helena. Gosto da simplicidade dela e sei que será uma excelente companheira. A irmã, inconformada, disse que jamais lhe perdoaria aquela escolha.

O tempo passa, as crianças crescem. Maria Helena e Humberto estariam levando uma vida normal, não fosse um terrível complexo de inferioridade dela em relação a ele. Não o acompanha a lugar algum, sequer aceita ir a um restaurante. No fundo, por insegurança. Ele, então, continua sua vida, como na época em que era solteiro. No entanto, era fiel a Maria Helena, não admitindo traição.

O relacionamento entre os dois é tão frio por parte dela que, após quinze anos de casamento,acabam separando-se corporalmente. A todos, dizia: - Não quero saber de homens! Já estou velha e sem paciência! E ria. Humberto, ainda em pleno vigor físico e sexual, guardava para si o desapontamento e a dor de se ver rejeitado. Não queria se relacionar com outras mulheres e tinha nos amigos um porto seguro.

Perguntava-se: - Terei, de fato, escolhido bem? Na verdade, continuei sozinho. Marilda estava certa, mas agora irei até o fim. Não abandonarei Maria Helena. Ainda amo essa mulher e não quero vê-la desamparada. É pessoa simples e inocente. Sinto pena dela.

A doença chega e, aos setenta anos, Humberto sente o desprezo de Maria Helena, que não lhe dá apoio necessário, deixando-o sozinho com suas dores. Contrata profissionais para cuidar dele e, sequer se aproxima, enquanto Humberto está imobilizado a um leito, devido a uma séria doença degenerativa.

Marilda, então, aparece para cuidar dele, procurar médicos especialistas, numa via crucis que durou exatamente três anos, os quais ela permaneceu lado a lado com o irmão. Um amor a toda prova.

Humberto recebe também a visita de seus inúmeros amigos. Cada fim de semana, eles se reúnem e vão, em grupo, animar o resto de vida dele. Seus olhos brilham cada vez que os vê chegando. É uma verdadeira festa para seu espírito. Lembram dos velhos tempos, das rodas de samba,das cervejas...

Maria Helena mostrou-se tão fria em relação à doença de Humberto, que chegou a negar dar-lhe a mão dois dias antes de sua morte. Marilda lhe pedira que o fizesse, que se despedisse. Isso, em voz baixa. - Que palhaçada! Que negócio é esse de dar a mão? Marilda dizia: - Faça um carinho nele, Maria Helena. Ele foi tão bom pra você e seus filhos...

Os filhos dela, já casados, sequer o visitaram. Além da dor física, a dor da alma era insuportável. - Quanto desprezo! pensava. - O que teria feito de mal na vida para merecer isso? Não se conformava.

No dia de sua morte, as lágrimas de Marilda lavaram seu caixão, enquanto Maria Helena, sentada, balançava os pés, num misto de chateação e impaciência por estar velando aquele corpo.

- Não sinto nada, graças a Deus! Estou em paz. Tudo já estava cansativo demais para nós.

Marilda, chorando, alisava o rosto do irmão, arrumava as flores e ainda dizia:- Eu avisei que sua escolha estava errada. Mas agora é tarde. Quem sabe, lá em cima, Iracema Freitas o espera? As pessoas que estavam próximas ouviram a conversa dela com o irmão e se surpreenderam com a lembrança de Iracema Freitas e de sua esperança de que o irmão ainda pudesse ser feliz, nem que fosse no além.

Todos saíram do cemitério, ficando apenas Marilda que, ainda chorando, dizia querer ficar mais um pouco com o irmão.

Nunca mais se ouviu falar em Humberto, nem nunca mais foram vistas lágrimas rolando por ele, a não ser as de Marilda.

  • Publicado em: 21/06/2004
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