A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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O PRECONCEITO

(Belvedere)

Geny estava feliz. Nunca havia trabalhado fora, sempre cuidando da casa e dos filhos. A oportunidade chegara como um presente para mudar suas perspectivas de vida.

Começou, então, a se ajeitar, ler revistas de moda, enfim, a sua ida para a recepção daquela clínica de estética após a súbita dispensa da recepcionista parecia uma dádiva dos céus.

A clínica crescia a olhos vistos, e com isso as esperanças de Geny de prosperar junto aos patrões. Chegava bem cedo, cumpria religiosamente suas tarefas. Tinha certeza de que seu trabalho era aprovado por eles, embora o salário não fosse dos mais tentadores. Só o fato de poder sair de casa, acabar com aquela rotina enlouquecedora, era balsâmico! Conversar sobre temas diversos, ver gente nova, alegre e bem-cuidada já a estava modificando, e sua auto-estima melhorando sensivelmente.

Quatro meses se passaram, quando começam os burburinhos de mudança na clínica. Geny estremece. Logo vem a saber que a clínica havia sido dividida e o sócio majoritário deixara de ser aquele que a empregara. Temeu ser dispensada, assim como todos os empregados. Ele já tinha outras duas clínicas famosas na cidade. Deveria ter pessoal para suprir as necessidades dessa, claro! O medo se alastrava...

Uma tarde, ele apareceu na clínica em meio à poeirada das obras que já haviam iniciado. Geny ouviu-o conversando com o sócio e soube que iria abrir outras modalidades de tratamentos estéticos. Percorreu a clínica, observou os funcionários que não conhecia, pois estava acostumado a ir ali apenas após o expediente. Olhou para Geny e disse:

— Você é feia e velha, não fica.

Quando ela me narrou o fato, chorando, eu ainda disse que para a maioria apenas garotas novas estariam aptas ao serviço de recepcionistas, mas que após os 40 anos outros tipos de serviço certamente haveriam ali para ela. Então, ela balançou a cabeça negando; disse que já havia sido dispensada. Sentia-se um saco de lixo.

Fiquei desesperada com aquele preconceito, uma imensa falta de respeito com o ser humano. Velha? Feia? Como se mede um ser humano através de valores tão perecíveis? Como fica a honestidade, a força de vontade, o poder íntegro de trabalho dessa pessoa?

Ela chorava... falei que certamente ele não merecia ter alguém tão sensível por perto. Mostrara-se um ser duro, mal-educado, prepotente. Que ficasse com os que tivessem afinidade com ele.

Chega o dia da despedida. Chorosa, é, no entanto, surpreendida por uma bela festa! Os funcionários que ficaram, e os clientes, se reuniram para proporcionar um momento mágico à Geny.

Tortas, docinhos, salgados, dezenas de bolas coloridas, músicas alegres... Entregamos a ela três lindos presentes: um vestido bem jovial, um estojo de maquiagem e um bom livro para que sua auto-estima não degringolasse diante do ocorrido. Ela recebeu muitos abraços, pôde sentir o quanto era querida. Afagamos o seu ego, dizendo que ela era jovem, sim, e bela!

Assim, sentiu-se amada. Sorriu e falou que partiria para outra! Não seria isso que faria com que desistisse de seus planos de ser feliz.

Aos cinqüenta anos, em pleno potencial, Geny fora dispensada porque para o novo patrão era velha e feia.

Pergunto: aonde chegaremos com os valores humanos sendo avaliados dessa forma?

  • Publicado em: 10/05/2004
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