A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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UMA CASA, COM CERTEZA

(Belvedere)


(A Ana Suzuki)

Gosto de visitar dona Wanda, naquela vila da periferia que se conserva como há uns cinqüenta anos. A casa dela, embora pobre, é tão acolhedora que sinto uma paz indescritível invadir meu ser. Os pássaros parecem prever minha chegada, tamanha é a cantoria que ouço ao entrar pela porta, após subir as escadas tão belamente decoradas por vasinhos de flores. Vasos que são de cores variadas, alguns pintados pela própria dona Wanda. Esses são os mais bonitos e com as cores mais diferentes, originadas pela mistura que faz com as tintas. Pintora nata.

Ela sempre sabe quando vou, pois chegar de surpresa não é nada delicado, ainda mais numa casa de gente idosa, que gosta de fazer as honrarias. Ela adora me esperar com a mesa do lanche posta: doce de abóbora com coco e também de laranja da terra e queijos variados.

Aliás, graças a Deus muita gente se prontifica a me agradar com tais doces, visto que, por mais que eu tente, nunca acerto o ponto.

Dona Wanda é tão alegre e vivaz que me impressiona e me faz sentir uma velhinha perto dela, tamanha a disposição que tem. Vai à rua pelo menos umas três vezes ao dia. Cedinho vai à padaria comprar pão quentinho. Seu esposo, senhor Nathan, já deve estar com noventa e cinco, pelas minhas contas. Não é muito de conversa, mas adora declamar. Gosta especialmente de sonetos e de vez em quando aparece na sala para aproveitar um pouco do lanche que ela faz para mim, e eu peço que declame. Mas é apenas isso. Logo sai e fecha a porta de seu quarto. Na verdade creio que seja o cansaço da idade.

Na sala, os móveis bem antigos nos levam a imaginar histórias... Há uma imagem de São Jorge cuja luzinha vermelha fica acesa indefinidamente. Nunca perguntei como a coisa funciona.

O quarto deles é uma gostosura! Sobre uma cômoda oito porta-retratos de variadas épocas. Vejo-os com os filhos ainda crianças, depois o casal já com os cabelos embranquecendo; observo emocionada as alegrias de aniversários, natais, enfim, uma festa para o espírito. Há também jarrinhos com flores naturais. Nada ali é artificial. Um terço imenso enfeita seu leito, presente da irmã Eugênia, quando foi à Itália.
- Que Deus a tenha - diz dona Wanda.

Para que tenham idéia, dona Wanda muitas vezes faz massa do macarrão pedindo ajuda à nora, Neydinha. Ninguém pode imaginar o que seja a macarronada dela.

Percorro os jardins dessa casa e colho uma rosa bem vermelhinha. Embrulho o cabo e digo que vou levar para minha mãe. Dona Wanda se deleita! Começa a tecer comentários sobre o amor filial. Aproveita para mais uma vez relembrar o filho Henrique, que um dia saiu de casa e nunca mais voltou. Ela ainda chora, trinta anos passados do fato.

Olho o relógio no meu pulso. Dezenove horas. A visita durou exatamente quatro horas e para mim foi pouco, pois estar ali, naquele ambiente tão cheio de boas vibrações, com uma pessoa amorosa como ela, me faz ter certeza absoluta de que a vida é, de fato, maravilhosa.

  • Publicado em: 04/05/2004
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