A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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AQUELA MULHER

(Belvedere)

Sempre fui muito interessada nas pessoas diferentes, de maneira que busco sempre saber o porquê das diferenças e me comovo e enriqueço com as lições que essas pessoas me passam.

Há duas semanas, caminhando por uma rua que atualmente é um dos meus trajetos obrigatórios, resolvi interpelar aquela mulher vestida feito cigana, porém suja, cabelos emaranhados, unhas malcuidadas. Sua saia tinha bordados. Dava vontade de saber como um dia teria sido aquela roupa e aquela mulher.

Ela nada pede aos transeuntes. Ao contrário, quando alguém chega perto ela vira o rosto. Dessa vez decidi insistir. Tive uma intuição e perguntei a ela se conhecia alguma erva especial para curar lumbago. Na verdade, ela parece uma índia e por isso essa idéia me surgiu. Então, olhou-me e disse que na próxima semana me traria as ervas que ela mesma colheria. Não perguntei mais nada e me despedi. Essa semana ela me entregou as ervas, porém não disse qual era. Sem que eu nada perguntasse disse que pertencia a família X. Por sinal, uma das mais famosas da cidade. "Como? Mas se você é da família X, por que anda pelas ruas assim?", perguntei. Ela disse que esse tipo de pergunta ela não aceitava, mas como sentia que eu era sincera, me contou.

Ela atualmente tem 44 anos, mas aos 15 teve que ocultar uma gravidez, embora a família tivesse ciência. O parto foi às escondidas, já que a família não aceitava a gravidez precoce, e ainda mais sem casamento. No caso dela, sequer sabiam quem era o pai. Logo que deu à luz, o bebê foi entregue para adoção. Ela soube do fato apenas ao chegar em casa. No hospital, disseram que o bebê já havia saído para se alimentar porque ela não tinha leite suficiente e em casa seria melhor tratado. Um desespero imenso tomou conta dela e começou a quebrar todas as louças da casa, tentou colocar fogo nas mobílias. Enlouquecera. Sua vontade era a de matar os pais e as irmãs com um facão. Não houve jeito. Foi parar em um hospital psiquiátrico, onde conviveu com diversas doenças piores do que a dela. Quando saiu, não era a mesma. Disse à família que a deserdasse, pois não pertencia mais àquele antro de hipócritas. Tentaram de todas as formas dissuadi-la da idéia, acenaram com a possibilidade de casamento e de um filho com pai. Ela cada vez mais desesperada. Como suprir a falta daquele bebê que carregara durante nove meses e que fora de forma vil retirado de seus braços? Era homem. E ela tinha escolhido o nome Matheus para ele.

Perguntei como a família havia agido após ela ter abandonado o lar. Respondeu-me que apenas duas vezes recebera a visita de sua irmã mais velha, e depois o abandono que, para ela, foi bem melhor. Nunca os perdoará, disso tem a mais absoluta certeza.

Ao final da conversa, disse-me que sua maior vitória fora não ter se suicidado, pois o corpo era uma dádiva de Deus. Ela acreditava Nele e sabia que um dia lhe traria Matheus de volta.

Saiu de casa com a roupa do corpo e tornou-se uma pedinte. Sim, era pedinte, mas pouco necessitava. Uma refeição por dia era o suficiente. Não tinha forças para trabalhar e conseguira superar a idéia de suicídio. Vivia pensando na vida. Refletia muito.

Diariamente um prato de comida lhe era oferecido pelos comerciantes do local. Ela variava de ponto, mas era sempre benquista porque não incomodava. Era uma mulher bela, tirando aquela sujeira que a envolvia.

Vim para casa com o pacote de ervas, mas uma dúvida. Que erva seria aquela? Parecia gente boa, porém não sei se teria coragem de fazer o chá e tomar. Como confiar em uma pessoa assim? Ai, que preconceito, dirão vocês. Mas imaginem se estivessem no meu lugar. Teriam coragem de tomar o chá sem medo algum? Ou correriam a perguntar aos entendidos em erva qual seria aquela?

Hoje, a encontrei e ela perguntou-me sorridente se estava melhor do lumbago. Disse que sim, depois do chá havia melhorado muito. Ela sorriu e disse que tudo era espiritual. Aquelas folhas eram nada. Não prejudicavam, nem ajudavam. Queria apenas me dar alento.

Ai, Deus! Que lição, que grandeza naquele coração. Senti que o meu era pequeno, tão pequeno que se dissolveria no ar como uma bolhinha de sabão...

  • Publicado em: 29/03/2004
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