A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Uma Livraria Fechou

(Belvedere)

Hoje à tarde saí para comprar uns vinhos chilenos que me indicaram. Fui até a rua mais movimentada do bairro. Chamam-na passarela da moda.

Ao entrar na loja de bebidas especiais, fiquei encantada, embora só tome vinhos e licores. Comprei alguns vinhos e, como já tinha um bom estoque de Amarulla e Amaretto, não trouxe nenhum licor.

Voltando das compras, vi uma loja fechada. Mais uma, pensei. Cada loja fechada é uma dor tão profunda que sinto. Ultimamente essa dor tem sido freqüente devido à crise que atravessamos. Olhei a loja fechada, pensando qual seria... Subitamente me veio à mente: A livraria! A livraria na qual eu costumava entrar para bater papo.

Há três livrarias onde compro muito, mas nessa que fechou eu comprava pouco. Gostava mesmo era de entrar para conversar com o dono, que é um sujeito simples e culto. Falávamos sobre lançamentos de livros, sobre estilo de poetas e prosadores.

Na última vez que lá estive, li a minha crônica Luzes para ele, que pediu-me uma xerox e colou em seu mural. Fiquei lisonjeada.

Hoje, ao ver a livraria fechada, foi difícil descrever o baque.

Clamei feito louca aos céus. Por quê? O mundo empobreceu agora! Sinos tinham que dobrar, carpideiras tinham que se juntar a mim para chorar...

Sentei em um banquinho da rua e chorei... sozinha! Quantas saudades me invadiam. Ali comprei meu primeiro Neruda, ali conheci Hilda Hilst, Adélia Prado...

Quero ler salmos, que anjos me cubram com suas asas!

O que faço para dizer o quanto isso dói em mim?

Agora, onde falarei sobre Neruda? Onde entregarei meus textos para murais? Já estava acostumada a isso!

Deixem-me sozinha. Quero chorar, e muitos vão dizer que isso é uma bobagem.

Sinto que não estou só. Drummond me diz que sempre haverá uma pedra no meio do caminho. Levanto, sigo sorrindo... e chorando.

Florbela, Bandeira, Pessoa, um séquito me acompanha, e ao lado deles saio declamando poesias em voz alta. As pessoas me olham, mas não ligo.

Drummond elegantemente me acompanha no poema.

Quem poderá negar a magia que existe em uma livraria?
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra no meio
do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

(Carlos Drummond de Andrade)

  • Publicado em: 22/03/2004
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