"Ó doce olhar de sonho, ó vida dum viver
Amortalhado sempre à luz duma saudade!"
Florbela Espanca
Sábado nublado, prenúncio de um final de semana chato, pensei.
Saí do cabeleireiro e dei de cara com Vicente. Há muito tempo
não o via. Fizemos juntos uma oficina de artes cênicas e muito
me divertia com ele. Simpatia pura! Separado da esposa, um eterno apaixonado,
aos setenta e quatro anos de idade.
Eu sempre o aconselhava para que voltasse para ela, que a procurasse. Comprava
cartões de amor e fazia com que ele escrevesse e enviasse pelo correio.
Ele se empolgava feito adolescente! Contava-me que a separação
fora devido ao apego dela aos filhos que agiam de forma com a qual ele não
concordava. Muita liberdade, e a cabeça dele não acompanhava.
Por isso saiu de casa e foi viver em um conjugado. Deixou o casarão com
jardim, piscina e empregados. Arcava com todas as despesas. Cabeça-dura
o Vicente! Eu dizia que procurasse viver a vida dele e deixasse a dos filhos
com a modernidade que é natural nos jovens. Lembro que em um dia dos
namorados fui à floricultura e comprei um buquê de rosas amarelas
e dei a ele um cartão para que escrevesse uma bela declaração,
depois eu mandaria alguém levar até ela. Vicente riu, tremeu e
escreveu um belo Te amo, Graça Maria!.
O tempo passa, as pessoas se separam. Foi o que aconteceu. Ele saiu da oficina,
e não o vi mais.
Eis que hoje, diante de mim, me abraçando, com os olhos brilhando e as
mãos tremendo... Pergunto: Tudo é emoção por
me ver? Ele me olha e diz: A patroa morreu!
Fiquei atônita. Então contou-me que ambos já haviam acertado
tudo. A esposa iria morar com ele no conjugado e deixaria que os filhos vivessem
a vida deles. No dia em que ela se despediria dos filhos, convidou-o para um
churrasco na casa, mas ele declinou do convite. Durante o churrasco, a família
reunida, ela, esquecendo que já era uma senhora de setenta anos, ou talvez
empolgada com a volta ao tempo de amor, subiu em uma mangueira para pegar algumas
mangas e caiu de forma que teve fraturas múltiplas, não mais se
recuperando. O mais marcante na ocorrência foi que ninguém na casa
gostava de manga, nem ela, a não ser Vicente. É a fruta preferida
dele, e por isso ela iria fazer o doce de manga... Que ironia da vida! Em três
meses ela se foi. Eu, com cara de boba, tudo ouvia. Não podia agora dizer
que mandasse cartão, que enviasse flores... Como agiria, meu Deus?
Sei que senti vontade, e disse: Amigo, sinta-se feliz. Você nunca
escondeu o seu amor. Se isso ocorreu quando decidiram ficar juntos de novo é
porque outros caminhos você irá percorrer. Fique tranqüilo
e siga a sua vida. Viva o seu luto, mas lembre que a vida prossegue. Vicente
sorriu e disse que o médico havia dito a mesma coisa para ele. Agora
já estava na natação e no judô. Começava a
se reintegrar a vida, após oito meses de tristeza profunda.
Abraçando-o, disse que quando quisesse conversar eu sempre estaria com
o meu coração aberto. Ele, então, se despediu dizendo:
Coloquei no meu quarto um pôster dela e toda noite eu digo o quanto
eu a amo.
Eu respondi: Que bom. Diga, pois ela te ouvirá. Esses laços
de amor nunca são cortados. São eternos! Bendito seja esse amor
que vocês tiveram oportunidade de vivenciar, apesar de todos os percalços.